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domingo, 16 de julho de 2017

Resposta ao artigo “O que é a esquerda?” de Roger Scruton




Introdução

Um artigo recentemente foi traduzido pelo site Xibolete, intitulado “O que é a esquerda?” do filósofo conservador  britânico Roger Scruton e que foi republicado pela página Universo Racionalista. E o propósito deste texto aqui é respondê-lo de forma crítica. Há, indubitavelmente, uma carência e necessidade de um bom debate acerca de temas que, outrora, ficam apenas em especulações de sentimentalismos ruins. Quando filosofias se ancoram ao senso comum, viram ideologias ou passam a constituir retalhos delas.

O artigo tem muitos problemas. Em algumas passagens ele dá o ar de “sugerir” uma natureza humana à sociabilidade das condições materiais para a pobreza e aristocracia postas ali. Outro pressuposto problemático é o “igualitarismo” marxista. O autor comenta que há uma necessidade à priori dessa igualdade através da abolição da propriedade privada, pois “Em toda esfera em que a posição social dos indivíduos puder ser comparada, a igualdade é a posição padrão.”.


A resposta ao argumento do filósofo


O texto não é longo, entretanto, faz afirmações complexas e conjecturas pouco plausíveis ao decorrer do argumento. Assim ele é iniciado:

“A posição de esquerda estava já claramente definida no tempo em que a distinção entre esquerda e direita foi inventada. Esquerdistas acreditam, com os jacobinos da Revolução Francesa, que as benesses deste mundo são injustamente distribuídas, e que a falha está não na natureza humana, mas em usurpações praticadas por uma classe dominante. Eles se definem, em oposição ao poder estabelecido, como paladinos de uma nova ordem que retificará a queixa antiga dos oprimidos.

Dois atributos da nova ordem justificam que ela seja buscada: a liberação e a ‘justiça social’. Ambas correspondem grosso modo à liberdade e igualdade defendidas pela Revolução Francesa, mas apenas grosso modo. A liberação hoje defendida pelos movimentos de esquerda não significa simplesmente a liberdade contra a opressão política ou o direito a fazer o que se quer sem perturbação. Significa emancipação contra ‘estruturas’: das instituições, costumes e convenções que moldaram a ordem ‘burguesa’, e que estabeleceram um sistema compartilhado de normas e valores no coração da sociedade ocidental. Até aqueles esquerdistas que se afastam do liberalismo dos anos 1960 consideram a liberdade como uma forma de soltura de restrições sociais. Muito de sua literatura é devotado a desconstruir tais instituições como a família, a escola, a lei e o estado-nação através dos quais a herança da civilização ocidental tem sido passada para nós. Essa literatura, vista em sua forma mais fértil nos textos de Foucault, representa como ‘estruturas de dominação’ o que outros vêem meramente como instrumentos da ordem civil.”

O autor começa com dois pressupostos básicos: 1) “natureza humana”, ou seja, as relações sociais e de produção já são pré-determinadas; e 2) trata a “justiça social” como um ideal metafísico e de profunda periculosidade à tradição republicana.

Porém, tais pressupostos são, em resumo, simplistas e falaciosos. Scruton fala em “emancipação contra ‘estruturas’” e costumes e convenções que moldaram a ordem ‘burguesa’”. Mas, por exemplo, em  Marx, o indivíduo só se realiza e efetiva seus potenciais no interior da sociedade, na ampliação das relações do indivíduo com o mundo. E, também, afirma a necessidade de se emancipar os indivíduos das limitações impostas a eles pelas classes sociais, mercado, divisão do trabalho, etc.

O filósofo usou de Foucault para seu argumento dizendo que as “estruturas de dominação” é a representação do qual são “instrumentos da ordem civil” para destruição da “família”, etc. Carlos Nelson Coutinho, pontualmente, critica essa visão reducionista com vestimenta do idealismo ingênuo:

“O conceito de ‘estrutura’ é a ponte através da qual passa-se do epistemologismo neopositivista à ‘ontologia’ estruturalista. Isso implica, desde logo, a conversão do idealismo subjetivo dos primeiros em uma nova e abstrusa forma de idealismo objetivo. Como vimos, no neopositivismo, a racionalidade e o significado dependem exclusivamente da sintaxe lógica da língua. Além disso, para eles, o estabelecimento dessa sintaxe é um fato ‘convencional’, arbitrário, que depende de uma decisão puramente subjetiva.” (COUTINHO, N; 2010, p. 99).

Nos parágrafos seguintes, Scruton escreve:

“A liber[t]ação das vítimas é uma causa sem fim, pois novas vítimas sempre aparecem no horizonte quando as últimas escapam para o vazio. A libertação das mulheres da opressão masculina, dos animais do abuso humano, dos homossexuais e transexuais da ‘homofobia’, até de muçulmanos da ‘islamofobia’ – todas essas causas foram absorvidas às agendas de esquerda mais recentes, para serem consagradas em leis e comitês supervisionados por um oficialismo censório. Gradualmente, as velhas normas de ordem social foram marginalizadas, ou até penalizadas como violações de ‘direitos humanos’. De fato, a causa da ‘libertação’ viu a proliferação de mais leis do que jamais foram inventadas para suprimi-la – basta pensar no que é agora codificado na causa da ‘não-discriminação’.

Similarmente, a meta da ‘justiça social’ não é mais igualdade perante a lei, ou a igual reivindicação aos direitos de cidadania, como eram defendidos no Esclarecimento. A meta é um rearranjo abrangente da sociedade, de forma que privilégios, hierarquias, e até a distribuição desigual de bens sejam superados ou desafiados. O igualitarismo mais radical dos marxistas e anarquistas do século XIX, que buscavam a abolição da propriedade privada, talvez não tenha mais um apelo amplo. Mas por trás da meta da ‘justiça social’ marcha uma outra mentalidade igualitária mais obstinada, que acredita que a desigualdade em qualquer esfera – propriedade, lazer, privilégio legal, prestígio social, oportunidades educacionais ou qualquer outra coisa que possamos querer para nós e nossas crianças – é injusta até prova em contrário. Em toda esfera em que a posição social dos indivíduos puder ser comparada, a igualdade é a posição padrão.”

O filósofo dá título de “O que é a esquerda?” um espectro político tão variado – ou seja, onde não existe a esquerda, mas “esquerdas”. Esquerda não é uma receita de bolo ou uma cartilha de panfletagem como pensam os mais lunáticos. A “defesa” de pautas minoritárias; identitárias e “libertárias”, não é, evidentemente, “de esquerda” ou só dela. Bem como há liberais que defendem o “liberalismo social” (a roupagem da “direita” menos reacionária). O que se passa, efetivamente, é o politicismo quando se “vê” na política como corpo a ser “mudada” através de “marcha [de] uma outra mentalidade igualitária mais obstinada, que acredita que a desigualdade em qualquer esfera [...] é injusta até prova em contrário”. E nisso, o filósofo brasileiro José Chasin argumenta:

“O politicismo arma uma política avessa, ou incapaz de levar em consideração os imperativos sociais e as determinantes econômicas. Expulsa a economia da política ou, no mínimo, torna o processo econômico meramente paralelo ou derivado do andamento político, sem nunca considerá-los em seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais (...). Trata-se, está claro, de um passo ideológico de raiz liberal.” (CHASIN. J; p. 124).

A problemática do trecho “O igualitarismo mais radical dos marxistas e anarquistas do século XIX, que buscavam a abolição da propriedade privada, talvez não tenha mais um apelo amplo” é ratificada “em que a posição social dos indivíduos puder ser comparada, a igualdade é a posição padrão.”.

Pois bem. O autor, ao partir da premissa de uma esquerda unitária, isto é, única e unívoca, comete um grave erro: a igualdade que se dizem tanto por aí (endossada pelos neopostivistas e empiristas) é abstrata. Para falarmos em igualdade, é preciso, portanto, superar a divisão social do trabalho, a exploração e a lógica mercadológica – e o Estado burguês. Numa sociedade da indiferença, a individualidade é homogeneizada. Só numa sociedade humanamente diferente é onde nossas diferenças sociais aparecem. Mais além, o britânico segue a argumentação sobre “justiça social”:

“Incorporado na prosa moderada de John Rawls, esse pressuposto pode passar despercebido. Nos chamados mais agitados de Dworkin por ‘respeitar como um igual’, em oposição a ‘respeito igual’, ele pode fazer com que as pessoas se perguntem para onde está indo o argumento. Mas o mais importante ponto a se notar é que é um argumento que não permite que nada fique em seu caminho. Nenhum costume, instituição, lei ou hierarquia existentes; nenhuma tradição, distinção, regra ou devoção podem se sobrepor à igualdade, se não puderem provar o seu valor com credenciais independentes. Tudo o que não se conformar à meta igualitária deve ser extirpado e reconstruído, e o mero fato de que algum costume ou instituição foi herdada e aceita não é argumento a seu favor. Dessa forma, a ‘justiça social’ torna-se uma exigência precariamente velada pela ‘limpeza completa’ da história que os revolucionários sempre tentaram fazer.

As duas metas, de liberação e justiça social, não são obviamente compatíveis, não mais que a liberdade e a igualdade defendidas na Revolução Francesa. Se a liberação envolve a liberação do potencial individual, como é que pararemos os ambiciosos, os enérgicos, os inteligentes, os bonitos e os fortes de tomarem a dianteira, e o que devemos nos permitir fazer para reprimi-los? Melhor não enfrentar essa pergunta impossível. Melhor chamar as velhas mágoas em vez de examinar o que viria de expressá-las. Ao declarar guerra às hierarquias e instituições tradicionais em nome desses dois ideais, portanto, a esquerda consegue obscurecer o conflito entre ambos. Além disso, a ‘justiça social’ é uma meta tão enormemente importante, tão inquestionavelmente superior aos interesses estabelecidos que vão contra ela, que toda ação feita em seu nome está purificada.”

Nesse trecho podemos ter clara a noção idealista de “igualdade”. Marx, no texto “Crítica do Programa de Gotha” já fizera esta crítica ao “igualitarismo”. Aliás, uma crítica que nem mesmo os marxistas – em maioria – conhecem:

“Eliminação de toda desigualdade social e política’, em vez de ‘superação de toda distinção de classe’, é também uma expressão muito duvidosa. De um país para outro, de uma província para outra e até mesmo de um lugar para outro, sempre existirá certa desigualdade de condições de vida, que poderá ser reduzida a um mínimo, mas nunca completamente eliminada. Os habitantes dos Alpes terão sempre condições de vida diferentes das dos povos das planícies. A representação da sociedade socialista como o reino da igualdade é uma representação unilateral francesa, baseada na velha “liberdade, igualdade, fraternidade”, uma representação que teve sua razão de ser como fase de desenvolvimento, em seu tempo e em seu lugar, mas que agora, como todas as unilateralidades das primeiras escolas socialistas, deveria ser superada, uma vez que serve apenas para provocar confusão nos cérebros e porque, além disso, descobriram-se formas mais precisas de tratar a questão.” (MARX, K; 2012, p. 55).

Ainda sim, o filósofo faz uma falsa acusação que “Dessa forma, a ‘justiça social’ torna-se uma exigência precariamente velada pela ‘limpeza completa’ da história que os revolucionários sempre tentaram fazer.”.

Contudo, a impassibilidade do argumento se torna inevitável porque, como dito, a questão da “justiça social” é idealista e fica vedada ao plano do ideal, quando, na realidade, a superação da propriedade privada também é sustentada não no aspecto moral ou metafísico, mas nas relações humanas engendradas.

“Não apenas a vulgarização da economia política foi um processo necessário de reação às primeiras revoluções proletárias. A concepção da Sociologia enquanto ciência autônoma foi igualmente uma reação conservadora às revoluções de 1848. A nova ciência surge com a desintegração da escola ricardiana na Inglaterra, com Herbert Spencer, e do socialismo utópico na França, com August Comte. A criação do “ponto de vista sociológico” insere-se no trajeto de desintegração do pensamento progressista burguês porque traz a possibilidade para os ideólogos burgueses de se estudar os problemas sociais prescindindo de sua base econômica. A totalidade da sociedade humana é assim parcelada em fatos sociais ou esferas isoladas. Dessa maneira, com a nascente Sociologia, a categoria da totalidade fica para trás na história do pensamento burguês.” (CARLI, R. Dois lados de uma mesma moeda: A dissolução da economia clássica e o nascimento da Sociologia, 2009 – Revista Emancipação).

No decorrer do texto do Roger, temos:

“É importante tomar nota desse potencial purificador. Muitas pessoas na esquerda são céticas quanto aos impulsos utópicos; ao mesmo tempo, tendo se aliado sob uma bandeira moralizante, encontram-se inevitavelmente compelidas, inspiradas e afinal governadas pelos membros mais fervorosos de seu secto. Pois a política na esquerda é a política com um objetivo: o seu lugar na afiliação é julgado por quão longe você está preparado a ir pela ‘justiça social’, seja lá como é definida. O conservadorismo – ao menos aquele dentro da tradição britânica – é a política do costume, da transigência e da indecisão resolvida. Para o conservador, a afiliação política deve ser vista da mesma forma que a amizade: não há um propósito primordial, mas mudanças cotidianas de acordo com a lógica imprevisível de uma conversa. Extremistas dentro da afiliação conservadora, portanto, são isolados, excêntricos e até perigosos. Longe de serem parceiros profundamente zelosos num empreendimento em conjunto, são separados por seu próprio senso de propósito daqueles que buscam liderar.”

Um trecho muito problemático, para dizer o mínimo. Primeiro que é inevitável a ingenuidade ou mal-intecionalidade do autor dizer Para o conservador, a afiliação política deve ser vista da mesma forma que a amizade: não há um propósito primordial, mas mudanças cotidianas de acordo com a lógica imprevisível de uma conversa. Extremistas dentro da afiliação conservadora, portanto, são isolados, excêntricos e até perigosos.”.

Mais uma vez, temos aqui, portanto, a visão fragmentária da sociedade. A “justiça social” seria como o bastião das lutas diárias, ou seja, o politicismo explícito e mal-ajambrado da argumentação.

“O politicismo é intrínseco à ordem do capital: a ordem econômica é natural, a ordem política é o que resta para o homem configurar, e esta é decisiva, molda a convivência e realiza a justiça. A economia é [vista como] uma espécie de pano de fundo por si amorfo, ou melhor, uma plataforma virtual com várias possibilidades, que será decidida pela política.” (CHASIN, J; 1999, p. 38).

O texto segue com um parágrafo deveras instigante. Comenta sobre uma questão da historicidade marxiana:

“Marx dispensou os vários socialismos de seu tempo como ‘utópicos’, distinguindo ‘socialismo utópico’ de seu próprio ‘socialismo científico’ que prometia ‘comunismo completo’ como seu resultado previsível. A ‘inevitabilidade histórica’ dessa condição dispensou Marx da necessidade de descrevê-la. A ‘ciência’ consiste em ‘leis do movimento histórico’ delineadas n’O Capital e em outros textos, segundo as quais o desenvolvimento econômico dá origem a mudanças sucessivas na infraestrutura econômica da sociedade, permitindo a nós a previsão de que a propriedade privada irá um dia desaparecer. Depois de um período de tutela socialista – uma ‘ditadura do proletariado’ – o estado ‘murchará’, não haverá lei nem necessidade dela, e tudo será de propriedade comum. Não haverá divisão do trabalho e cada pessoa viverá toda a gama de suas necessidades e desejos, ‘caçando de manhã, pescando de tarde, cuidando do gado à tardinha e se engajando em crítica literária depois do jantar’, como nos dizem em A Ideologia Alemã.”

Marx nunca disse que, inevitavelmente, a propriedade privada vai deixar de existir e o que o Estado ‘definhará’ (aliás, desafio o autor a mostrar-nos isso), mas que é uma tendência histórica que depende da ação política e da luta de classes. É algo bem fácil de perceber se contextualizarmos a obra com o tempo histórico em que foi concebida, visto que Marx e Engels viveram em um momento de gênese da organização da classe trabalhadora, em uma efervescência revolucionária que tomava toda a Europa. A questão é que Marx, diferente de outros teóricos do socialismo, não via no movimento do capital a superação da propriedade privada e do Estado, como se o capitalismo estivesse fadado a ruir, mas sim justamente nessa mobilização revolucionária. Até porque se fosse “uma lei histórica do movimento do capital” a ruína de seu sistema, para quê a revolução da classe trabalhadora? Isto principalmente após a as Revoluções de 1848 e a Comuna de Paris?

Para responder o trecho, finalmente, de forma objetiva, o filósofo húngaro György Lukács, diz claramente e de forma pontual:

“Talvez ainda mais relevante para a teoria marxista da história seja a questão do desenvolvimento desigual, à qual já fizemos referência. Nas notas fragmentárias com as quais conclui a Introdução ao “Rascunho”, Marx se detém, sobretudo, na ‘relação desigual’ verificada no vínculo entre desenvolvimento econômico e objetivações sociais importantes, como o direito e, sobretudo, a arte. Ele sublinha de imediato um momento ontológico-metodológico decisivo, que deve estar no centro da argumentação quando se enfrentam esses problemas: o conceito de progresso. Sua indicação é que “em geral o conceito de progresso não seja concebido com a abstração habitual”. Trata-se, em primeiro lugar, de romper com a abstratividade de um conceito muito genérico de progresso; em última instância, esse conceito seria a aplicação ao curso histórico da extrapolação lógico-gnosiológica de uma ‘ratio’ generalizada de modo absoluto. Quando discutimos sobre essência e fenômeno, tivemos a oportunidade que, segundo Marx, o progresso econômico objetivo, ainda que explicite as faculdades humanas em geral, pode provocar, de modo concretamente necessário, a redução, a deformação etc. – ainda que temporárias – dessas faculdades.” (LUKÁCS, G; 2012, p. 380).

O britânico segue sua linha argumentativa assim:

“Dizer que isso é ‘científico’ em vez de utópico é, em retrospecto, pouco mais que uma piada. A afirmação de Marx sobre caçar, pescar, ser fazendeiro por hobby e crítica literária é a única tentativa que ele faz de descrever como seria a vida sem propriedade privada – e se você pergunta quem lhe dá a arma ou a vara de pescar, quem organiza a matilha de cães, quem mantém as matas e canais, quem tira o leite e cuida dos bezerros, e quem publica crítica literária, tais perguntas serão dispensadas como ‘irrelevantes’, e como questões a serem resolvidas por um futuro que não é da sua conta. E quanto à questão de a imensa organização necessária para essas atividades de lazer da classe alta universal ser possível, numa condição em que não há lei, nem propriedade e portanto nenhuma cadeia de comando, tais questões são triviais demais para serem notadas. Ou, em vez disso, são sérias demais para serem consideradas, e portanto continuam despercebidas. Pois é preciso apenas a menor avaliação crítica para notar que o ‘comunismo completo’ de Marx contém uma contradição: é um estado em que todos os benefícios da ordem legal ainda estão presentes, mesmo embora não haja lei; no qual todos os produtos da cooperação social ainda existem, embora ninguém desfrute de direitos de propriedade que até aqui têm sido o único motivo para produzi-los.”

Marx não é um coletivista e nem um “anarquista” de final de festa. Como diz o professor Erik Gontijo:

“Ao contrário, toda a sua obra afirma a necessidade de se emancipar os indivíduos das limitações impostas a eles pelas classes sociais, mercado, divisão do trabalho, etc. Mas o individualismo de Marx não se confunde com o burguês, que isola o indivíduo no egoísmo (como algo próprio de sua “natureza”) e o contrapõe à sociedade. O mesmo quanto ao humanismo: enquanto aquele que procede da mentalidade burguesa é idealista, utópico, egoísta e reflete o fetichismo mercadológico dos “homens de igual valor” e a tolerância do ecumenismo do dinheiro, o humanismo marxiano afirma a emancipação dos indivíduos em uma sociedade autogerida.

Onde não cabe, evidentemente, nem coletivismo reacionário, nem coletivismo estatal, burguês. Tomar o Estado é necessário simplesmente porque detém poder material, que não ficará sobre o muro no caso de uma revolução. É preciso rachar o Estado e voltar seu poder contra aquilo para o qual ele existe como protetor. Senão, fiquem aí sonhando com suas miseráveis comunidades hippies.” (GONTIJO, E; 2017).

O texto prossegue de forma questionável sobre a História:

“A natureza contraditória das utopias socialistas é uma explicação da violência envolvida na tentativa de impô-las: é preciso força infinita para obrigar as pessoas a fazerem o que é impossível. E a memória das utopias pesou sobre os pensadores da Nova Esquerda dos anos 1960, e sobre os esquerdistas americanos que adotaram a sua agenda. Não é mais possível se refugiar em especulações etéreas que contentaram a Marx. Pensamentos reais são necessários para que acreditemos que a história pende ou deve pender para uma direção socialista. Daí a emergência dos historiadores socialistas, que diminuem sistematicamente as atrocidades cometidas em nome do socialismo, ou botam a culpa pelos desastres em forças ‘reacionárias’ que impediram o avanço do socialismo. Em vez de tentar definir as metas da liberação e da igualdade, os pensadores da Nova Esquerda criaram uma narrativa mitopoética do mundo moderno, na qual as guerras e genocídios foram atribuídos àqueles que resistiram à ‘luta’ justiceira pela justiça social. A história foi reescrita como um conflito entre o bem e o mal, entre as forças da luz e as forças das trevas. E, por mais nuançada e enfeitada que seja por seus muitos expoentes brilhantes, essa opinião maniqueísta permanece entre nós, consagrada no currículo escolar e na mídia.”

Ora, “a emergência dos historiadores socialistas, que diminuem sistematicamente as atrocidades cometidas em nome do socialismo” sequer o autor nos fornece um exemplo concreto. Uma afirmação arbitrária que nem merece perder tempo. Inclusive, o historiador britânico Eric Hobsbawm comenta logo no inicio de um texto intitulado “Renascendo das Cinzas”. Encontra-se no livro organizado por Rubin Blackburn e lançado no Brasil sob o título “Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo”.

E esta é uma abordagem plausível, pois o termo, o conceito, o programa, as realizações do socialismo e das políticas socialistas não constituem simples dados objetivos como, por exemplo, a localização de Londres no tio Tâmisa, geograficamente oposta aos Países Baixos, mas sim construções mentais. São nomes, modelos, rótulos que usamos para procurar compreender a situação na qual se encontra a humanidade desde a era das revoluções no final do século XIX e no começo do XX e que damos a certas tentativas de transformar e/ou melhorar a sociedade.” (HOBSBAWM, E; 1992).

Outro filósofo húngano, István Mészáros, comenta acerca dessa  história “reescrita como um conflito entre o bem e o mal”:

“Todos nós temos consciência da desintegração do pensamento e do conhecimento num número crescente de sistemas à parte, cada qual mais ou menos autossuficiente, com sua própria linguagem, e não assumindo a responsabilidade de saber ou preocupar-se com o que vai além de suas fronteiras.” (MÉSZÁROS, I; 1981, p. 269).

O texto termina de forma rasa, sem embasamento e afirmações ruins e injustificadas:

“A assimetria moral, que atribui à esquerda um monopólio da virtude moral e usa ‘direita’ sempre como um xingamento, acompanha uma assimetria lógica, a saber, uma presunção de que o ônus da prova está sempre com o outro lado. Esse ônus nem pode ser exonerado. Assim, nos anos 1970 e início dos 1980, quanto as teorias de Marx estavam sendo recicladas como a verdadeira explicação dos sofrimentos da humanidade sob regimes ‘capitalistas’, era raro encontrar qualquer menção nos periódicos de esquerda às críticas feitas aos textos de Marx no século anterior. A teoria de Marx sobre a história havia sido questionada por Maitland, Weber e Sombart; sua teoria do valor-trabalho por Böhm-Bawerk, Mises e muitos outros; suas teorias da falsa consciência, alienação e luta de classes por uma gama de pensadores, de Mallock e Sombart a Popper, Hayek e Aron. Nem todos esses críticos podiam ser postos à direita no espectro político, nem todos eram hostis à ideia de ‘justiça social’. Ainda assim, nenhum deles, até onde pude descobrir quando vim a escrever este livro, recebeu qualquer resposta da Nova Esquerda que fosse mais que uma zombaria.”

A primeira afirmativa é que a esquerda tem o “monopólio da virtude moral e usa ‘direita’ sempre como um xingamento.”. Vejamos o que Friedrich Engels nos fornece de argumento no livro “Anti-During”:

“De povo para povo, de época para época, as ideias de bem e de mal variaram de tal modo que, muitas vezes, se revelaram contraditórias. Mas, objetar-se-á, o bem não é o mal e o mal não é o bem, se se confunde o bem e o mal, desaparecem todas as formas de moralidade e cada um pode agir como bem entender. Despojada de toda a solenidade sibilina, é bem essa a opinião do sr. Duhring. Mas, apesar de tudo, a coisa não é assim tão simples. Se o fosse, nunca se discutiria o bem e o mal, todos saberiam o que é o bem e o que é o mal. Ora, que passa atualmente nesse campo? Que moral nos pregam hoje? É, em primeiro lugar, a moral feudal-cristã, herdada de séculos de fé e que se divide essencialmente em moral católica protestante, sem prejuízo de subdivisões novas que vão da moral jesuítica e da protestante ortodoxa até à moral latitudinária. Ao lado dela, figura a moral burguesa moderna e, a par desta, a moral do futuro, a do proletariado, de modo que, passado, presente e futuro fornecem, apenas em relação aos países da Europa, três grandes grupos de teorias morais, simultânea e concorrencialmente em vigor.” (ENGELS, F. Global, 1986).

A segunda afirmativa é: “A teoria de Marx sobre a história havia sido questionada por Maitland, Weber e Sombart”. Só que Max Weber, em seu tempo, possui uma filiação distinta: o sociólogo alemão está dentro dos limites do chamado neokantismo. Ele herda o seu resoluto relativismo subjetivo. Em confronto com o determinismo incondicional de Durkheim, temos aqui um individualismo que foi caracterizado por Mészáros como a “glorificação do relativismo e da arbitrariedade subjetiva”. Weber articulou seu pensamento tendo em mente o socialismo como principal adversário.

“Weber é claro em seu intento: reduzir Marx à “modéstia da hipótese”. O materialismo histórico-dialético é transformado em mera projeção ideal, em simples construto lógico. Sob a ótica de Weber, Marx teria criado conceitos lógicos, não importa que o fundador do materialismo moderno tenha dito que as categorias são formas de ser, determinações da existência. A estratégia de transformar Marx em uma “sociologia” é providencial para manipulá-lo, colocando-o em pé de igualdade com as outras centenas de sociologias que são produzidas nos quatro cantos do mundo. Amesquinha-se o método dialético-materialista para enquadrá-lo na investigação das disciplinas parciais. É preciso rebaixar Marx a apenas mais uma entre tantas explicações causais possíveis [...] Substitui-se o ponto de vista de classe pelo ponto de vista subjetivo. Marx deixa de ser o teórico da classe trabalhadora e transforma-se no teórico de seus próprios valores subjetivos, e Weber oportunamente deixa de ser um pensador burguês, fazendo-se pensador de si mesmo.” (CARLI, R; 2013, p. 90).

A terceira é: “sua teoria do valor-trabalho por Böhm-Bawerk, Mises e muitos outros; suas teorias da falsa consciência, alienação e luta de classes por uma gama de pensadores”. Uma tonelada de erros. A começar que “luta de classes” não é uma opinião teórica ou formulação arbitrária apenas para satisfação de ego. Vejamos, por exemplo, se a “luta de classes” é ou não uma “invenção”, segundo Carl Menger, um dos pioneiros do marginalismo:

“Com isso surge a necessidade de uma previdência - que a sociedade assegure proteção legal aos indivíduos que conseguiram apossar-se legitimamente da referida parcela de bens, contra os ataques dos demais indivíduos. Chegamos assim à origem econômica de nossa ordem jurídica atual: a proteção à propriedade, que constitui o fundamento da propriedade.” (MENGER, Carl, 1983, p. 271).

“A economia política clássica, enquanto ideologia da burguesia liberal em ascensão (que desenvolveu os argumentos do direito natural com o fim de justificar a propriedade móvel em detrimento da propriedade fundiária feudal), não podia renunciar ao conceito de trabalho. Nos séculos imediatamente precedentes, a consciência burguesa considerava a propriedade capitalista como "conquistada" através do trabalho, à diferença da propriedade feudal, fruto da mera apropriação. (...)

Com esta dedução da origem da propriedade privada a partir do trabalho, a propriedade burguesa aparece como legítima em face da propriedade feudal, contra a qual está em luta. Mais ainda: segundo esta concepção, o burguês deve sua propriedade a seu próprio trabalho e, por isto, pertence, em maior ou menos medida, à classe dos trabalhadores. Saint-Simon não pode liberar-se ainda desta ideia e incluiu os empresários industriais na classe trabalhadora. [...] Mas, se o princípio do trabalho defende o interesse da burguesia contra a propriedade feudal, ele passa a representar, na época do capitalismo maduro e diante dos embates do proletariado, um perigo para a propriedade burguesa. Nisto reside a principal razão da mudança de posição da teoria econômica burguesa.” (KOFLER, Leo., 2010, p.229-231).


Considerações finais:


Por fim, não tenhamos problemas para aceitar críticas a Marx e o marxismo em geral, eu mesmo faço várias (e marxistas sempre fazem), não apenas pela amplitude da obra cuja é passível de assinalações, bem como a um amplo leque de marxistas; porém, ao menos os críticos devem ter a decência de consultar fontes que dê credibilidade teórica e rigor metodológico.

Muitos críticos insistem em dizer que Marx está morto e intelectualmente falido (vide Mario Bunge), mas todo mundo acha pelos em casca de ovo para poder criticá-lo. Muito se vê a busca por superação das condições sociais atuais, mas poucos têm a seriedade no estudo e na prática.


Notas:



Referências bibliográficas:

BLACKBURN, R. Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

CARLI, Ranieri. György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Lumen  Juris, 2013, p. 90.

CHASIN, José. “Hasta Cuando”. In: A miséria brasileira, op. cit., p. 124.

CHASIN, J. Rota e prospectiva de um projeto marxista. In: Ensaios Ad hominem I, Santo André, 1999, p. 3).

COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 99-107.

ENGELS, F. Anti-Duhring. In: Sobre literatura e arte. 3ª ed. São Paulo: Global, 1986.

KOFLER, Leo. História e dialética: estudos sobre a metodologia da dialética marxista. Trad. José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010, p.229-231.

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 380-381.

MARX, K. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo. Boitempo. 2012, p. 55.
MENGER, Carl. Princípios de economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 271.

MÉSZÁROS, I.Marx: a teoria da alienação. São Paulo. 1981, p. 269.


Um comentário:

  1. Esse Sir Roger Scruton fez váaarias distorções do marxismo. Não são meras críticas. E aí pergunto: ele fez por ignorância ou por má fé? O problema é que se perde muito tempo e energia rebatendo esse tipo de argumento. A cada parágrafo que se lê do Sir Rogers, a irritação só aumenta (não sei você, mas eu sim!). Acredito que o Sir Rogers sabe muito bem disso, e a grande diversão dele deve ser ver o pessoal se esforçando pra desconstruir os argumentos que ele coloca. Esse velho só pode ser sádico!

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