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sábado, 22 de julho de 2017

Popper: a “crítica” em Marx



O texto aqui não pretende ser um artigo acadêmico. Para isso seria preciso um trabalho mais detalhado. Alguns rabiscos acerca de um assunto que às vezes aparece em alguns debates é o chamado “determinismo histórico” em Marx.

Ao saber quem tinha cunhado esse termo e dado “explicações” ao mesmo, apareceu um nome chamado Karl Popper. Embora o primeiro nome seja idêntico ao velho alemão, o britânico tinha-o como “inimigo” intelectual.

O Sr. Popper propõe um esquema de procedimentos dedutivos que oriente a refutação das teorias: “deve ser tomado como critério de demarcação não a verificabilidade, mas a falseabilidade” xiii” (Conjecturas e Refutações, 1945). Em escritos no contexto da guerra fria, Popper ataca o marxismo como um mito inimigo da “sociedade aberta” (para ele e seus amigos “neoliberais” tem que ficar dentro dos muros do capitalismo) e como “profecia historicista”.

A leitura dos livros escritos por Popper – nos quais pude folhear – demonstra a profunda incompetência dele para compreender o pensamento marxiano em geral; uma total incompreensão, em particular, acerca das concepções teóricas e do dinamismo interno da estrutura de pensamento de Marx. Quem não consegue compreender não é capaz de uma crítica efetiva, fica na incapacidade de superação ou de ir além.

Aliás, outro crítico a Marx, o argentino Mario Bunge (vulgo homem-margarina), também critica o critério de “falseabilidade” de Popper:

“A falseabilidade não é necessária para a cientificidade, porque há hipóteses científicas, tais como a existência de certas coisas ou processos (por exemplo, planetas extra-solares, ondas gravitacionais, células que emergem para a automontagem de compostos químicos, et cetera), que são apenas confirmáveis, porém são compatíveis com a maior parte do conhecimento científico.

A falseabilidade não é suficiente: há hipóteses não-científicas, tais como a determinação da personalidade pelos astros ou pelo treinamento do esfíncteres, que foram refutadas há muito tempo. Mas nenhuma delas é compatível com a maior parte do conhecimento científico. Ademais, a falseação não é mais conclusiva do que a confirmação.” (BUNGE, Mario. Cien Ideas. Editorial Laetoli, 2006. Tradução: http://www.universoracionalista.org/uma-critica-a-falseabilidade/)

Em uma entrevista intitulada “ATUALIDADE DE MARX E CRISE DO CAPITALISMO” com Geraldo Barbosa (pdf ), ele disse:

”Em ‘Conjecturas e Refutações’ – onde defende o método que prevê a cada falsificação empírica singular ou a cada incoerência lógica uma recusa de todo o conjunto de hipóteses teóricas e sua substituição por conjecturas novas – Popper volta a atacar Marx como um religioso que deifica a história e apresenta “profecias como as do velho testamento” e não “predições científicas”, porque estas teriam que ser “condicionais”, do tipo: “determinadas alterações (por exemplo, a mudança da temperatura da água numa chaleira) serão acompanhadas por outras modificações (como a fervura da água)” xiv. Aí temos a reafirmação da concepção neopositivista de ciência – restrita a “sistemas estacionários e recorrentes” - que desqualifica qualquer lei histórica (inclusive as da teoria da evolução de Darwin) e sequer compreende o conhecimento dialético da história concreta (em que o complexo é reconstruído na sua manifestação atual, gênese e devir tendencial).” (BARBOSA, Geraldo, p. 11).

Seria algo bastante simples “refutar” as teorias de Marx se a experiência histórica concreta mostrasse, por exemplo: na medida em que se desenvolve a indústria capitalista ela depende menos da tecnologia e o capital fica menos concentrado e centralizado; a parte do salário destinada a adquirir mercadorias diminui e aumenta a parte do salário destinada a adquirir os próprios meios de produção, permitindo que mais e mais trabalhadores se tornem donos das fábricas; se com o desenvolvimento do capitalismo diminuíssem as desigualdades sociais; se, além disso, transcorressem décadas sem crises econômicas e desaparecessem as contradições entre capital e trabalho. Então as predições de Marx estariam ”refutadas”.

É evidente que não foi esta a história real suposta do capitalismo desde 1867. Pelo contrário, as leis tendenciais de movimento que Marx descobriu estão sendo comprovadas pela experiência histórica. Mas isso só pôde ser por conta dessas tendências analisadas no objeto em movimento, ou seja, na investigação das contradições internas e não num apriorismo vulgar. Sua necessidade é tendencial e histórica. Desde sua obra juvenil sobre Epicuro, afirmou a objetividade do acaso e recusa qualquer dogmatismo racionalista.

Ora, se realmente o “determinismo histórico” foi algo “messiânico” ou “uma lei histórica do movimento do capital” a ruína de seu sistema, como escreve Popper, para quê a organização revolucionaria da classe trabalhadora? Isto principalmente após a as Revoluções de 1848 e a Comuna de Paris nos tempos de Marx? Certamente, não seria para “acelerar” o processo como se o capitalismo estivesse fadado a ruir, mas sim justamente nessa mobilização dos trabalhadores. Além disso, muitos dos avanços que temos sob o Capital se dá exclusivamente graças às lutas operárias e socialistas, como direitos trabalhistas, voto universal, etc.

Não há “teleologia” do comunismo porque a história não foi direcionada aprioristicamente para essa suposta fase histórica (e muito menos Marx afirmou isso) de modo que se possa dizer que ela tem esse telos, esse direcionamento obrigatório e inexorável. Teleologia é explicação do presente pelo futuro. Isso não existe em Marx. Só em mentes defeituosas como Popper em seu medo pelo fantasma vermelho.


“Fica-se com a marcada impressão que Popper quer ter as duas vias: é afoito para levar o crédito por uma ideia grande e radical; mas não quer engolir suas consequências grandes e radicais.” (HAACK, Susan. Diga “Não” ao Negativismo Lógico. Publicações da Liga Humanista Secular do Brasil, 2014).

domingo, 16 de julho de 2017

Resposta ao artigo “O que é a esquerda?” de Roger Scruton




Introdução

Um artigo recentemente foi traduzido pelo site Xibolete, intitulado “O que é a esquerda?” do filósofo conservador  britânico Roger Scruton e que foi republicado pela página Universo Racionalista. E o propósito deste texto aqui é respondê-lo de forma crítica. Há, indubitavelmente, uma carência e necessidade de um bom debate acerca de temas que, outrora, ficam apenas em especulações de sentimentalismos ruins. Quando filosofias se ancoram ao senso comum, viram ideologias ou passam a constituir retalhos delas.

O artigo tem muitos problemas. Em algumas passagens ele dá o ar de “sugerir” uma natureza humana à sociabilidade das condições materiais para a pobreza e aristocracia postas ali. Outro pressuposto problemático é o “igualitarismo” marxista. O autor comenta que há uma necessidade à priori dessa igualdade através da abolição da propriedade privada, pois “Em toda esfera em que a posição social dos indivíduos puder ser comparada, a igualdade é a posição padrão.”.


A resposta ao argumento do filósofo


O texto não é longo, entretanto, faz afirmações complexas e conjecturas pouco plausíveis ao decorrer do argumento. Assim ele é iniciado:

“A posição de esquerda estava já claramente definida no tempo em que a distinção entre esquerda e direita foi inventada. Esquerdistas acreditam, com os jacobinos da Revolução Francesa, que as benesses deste mundo são injustamente distribuídas, e que a falha está não na natureza humana, mas em usurpações praticadas por uma classe dominante. Eles se definem, em oposição ao poder estabelecido, como paladinos de uma nova ordem que retificará a queixa antiga dos oprimidos.

Dois atributos da nova ordem justificam que ela seja buscada: a liberação e a ‘justiça social’. Ambas correspondem grosso modo à liberdade e igualdade defendidas pela Revolução Francesa, mas apenas grosso modo. A liberação hoje defendida pelos movimentos de esquerda não significa simplesmente a liberdade contra a opressão política ou o direito a fazer o que se quer sem perturbação. Significa emancipação contra ‘estruturas’: das instituições, costumes e convenções que moldaram a ordem ‘burguesa’, e que estabeleceram um sistema compartilhado de normas e valores no coração da sociedade ocidental. Até aqueles esquerdistas que se afastam do liberalismo dos anos 1960 consideram a liberdade como uma forma de soltura de restrições sociais. Muito de sua literatura é devotado a desconstruir tais instituições como a família, a escola, a lei e o estado-nação através dos quais a herança da civilização ocidental tem sido passada para nós. Essa literatura, vista em sua forma mais fértil nos textos de Foucault, representa como ‘estruturas de dominação’ o que outros vêem meramente como instrumentos da ordem civil.”

O autor começa com dois pressupostos básicos: 1) “natureza humana”, ou seja, as relações sociais e de produção já são pré-determinadas; e 2) trata a “justiça social” como um ideal metafísico e de profunda periculosidade à tradição republicana.

Porém, tais pressupostos são, em resumo, simplistas e falaciosos. Scruton fala em “emancipação contra ‘estruturas’” e costumes e convenções que moldaram a ordem ‘burguesa’”. Mas, por exemplo, em  Marx, o indivíduo só se realiza e efetiva seus potenciais no interior da sociedade, na ampliação das relações do indivíduo com o mundo. E, também, afirma a necessidade de se emancipar os indivíduos das limitações impostas a eles pelas classes sociais, mercado, divisão do trabalho, etc.

O filósofo usou de Foucault para seu argumento dizendo que as “estruturas de dominação” é a representação do qual são “instrumentos da ordem civil” para destruição da “família”, etc. Carlos Nelson Coutinho, pontualmente, critica essa visão reducionista com vestimenta do idealismo ingênuo:

“O conceito de ‘estrutura’ é a ponte através da qual passa-se do epistemologismo neopositivista à ‘ontologia’ estruturalista. Isso implica, desde logo, a conversão do idealismo subjetivo dos primeiros em uma nova e abstrusa forma de idealismo objetivo. Como vimos, no neopositivismo, a racionalidade e o significado dependem exclusivamente da sintaxe lógica da língua. Além disso, para eles, o estabelecimento dessa sintaxe é um fato ‘convencional’, arbitrário, que depende de uma decisão puramente subjetiva.” (COUTINHO, N; 2010, p. 99).

Nos parágrafos seguintes, Scruton escreve:

“A liber[t]ação das vítimas é uma causa sem fim, pois novas vítimas sempre aparecem no horizonte quando as últimas escapam para o vazio. A libertação das mulheres da opressão masculina, dos animais do abuso humano, dos homossexuais e transexuais da ‘homofobia’, até de muçulmanos da ‘islamofobia’ – todas essas causas foram absorvidas às agendas de esquerda mais recentes, para serem consagradas em leis e comitês supervisionados por um oficialismo censório. Gradualmente, as velhas normas de ordem social foram marginalizadas, ou até penalizadas como violações de ‘direitos humanos’. De fato, a causa da ‘libertação’ viu a proliferação de mais leis do que jamais foram inventadas para suprimi-la – basta pensar no que é agora codificado na causa da ‘não-discriminação’.

Similarmente, a meta da ‘justiça social’ não é mais igualdade perante a lei, ou a igual reivindicação aos direitos de cidadania, como eram defendidos no Esclarecimento. A meta é um rearranjo abrangente da sociedade, de forma que privilégios, hierarquias, e até a distribuição desigual de bens sejam superados ou desafiados. O igualitarismo mais radical dos marxistas e anarquistas do século XIX, que buscavam a abolição da propriedade privada, talvez não tenha mais um apelo amplo. Mas por trás da meta da ‘justiça social’ marcha uma outra mentalidade igualitária mais obstinada, que acredita que a desigualdade em qualquer esfera – propriedade, lazer, privilégio legal, prestígio social, oportunidades educacionais ou qualquer outra coisa que possamos querer para nós e nossas crianças – é injusta até prova em contrário. Em toda esfera em que a posição social dos indivíduos puder ser comparada, a igualdade é a posição padrão.”

O filósofo dá título de “O que é a esquerda?” um espectro político tão variado – ou seja, onde não existe a esquerda, mas “esquerdas”. Esquerda não é uma receita de bolo ou uma cartilha de panfletagem como pensam os mais lunáticos. A “defesa” de pautas minoritárias; identitárias e “libertárias”, não é, evidentemente, “de esquerda” ou só dela. Bem como há liberais que defendem o “liberalismo social” (a roupagem da “direita” menos reacionária). O que se passa, efetivamente, é o politicismo quando se “vê” na política como corpo a ser “mudada” através de “marcha [de] uma outra mentalidade igualitária mais obstinada, que acredita que a desigualdade em qualquer esfera [...] é injusta até prova em contrário”. E nisso, o filósofo brasileiro José Chasin argumenta:

“O politicismo arma uma política avessa, ou incapaz de levar em consideração os imperativos sociais e as determinantes econômicas. Expulsa a economia da política ou, no mínimo, torna o processo econômico meramente paralelo ou derivado do andamento político, sem nunca considerá-los em seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais (...). Trata-se, está claro, de um passo ideológico de raiz liberal.” (CHASIN. J; p. 124).

A problemática do trecho “O igualitarismo mais radical dos marxistas e anarquistas do século XIX, que buscavam a abolição da propriedade privada, talvez não tenha mais um apelo amplo” é ratificada “em que a posição social dos indivíduos puder ser comparada, a igualdade é a posição padrão.”.

Pois bem. O autor, ao partir da premissa de uma esquerda unitária, isto é, única e unívoca, comete um grave erro: a igualdade que se dizem tanto por aí (endossada pelos neopostivistas e empiristas) é abstrata. Para falarmos em igualdade, é preciso, portanto, superar a divisão social do trabalho, a exploração e a lógica mercadológica – e o Estado burguês. Numa sociedade da indiferença, a individualidade é homogeneizada. Só numa sociedade humanamente diferente é onde nossas diferenças sociais aparecem. Mais além, o britânico segue a argumentação sobre “justiça social”:

“Incorporado na prosa moderada de John Rawls, esse pressuposto pode passar despercebido. Nos chamados mais agitados de Dworkin por ‘respeitar como um igual’, em oposição a ‘respeito igual’, ele pode fazer com que as pessoas se perguntem para onde está indo o argumento. Mas o mais importante ponto a se notar é que é um argumento que não permite que nada fique em seu caminho. Nenhum costume, instituição, lei ou hierarquia existentes; nenhuma tradição, distinção, regra ou devoção podem se sobrepor à igualdade, se não puderem provar o seu valor com credenciais independentes. Tudo o que não se conformar à meta igualitária deve ser extirpado e reconstruído, e o mero fato de que algum costume ou instituição foi herdada e aceita não é argumento a seu favor. Dessa forma, a ‘justiça social’ torna-se uma exigência precariamente velada pela ‘limpeza completa’ da história que os revolucionários sempre tentaram fazer.

As duas metas, de liberação e justiça social, não são obviamente compatíveis, não mais que a liberdade e a igualdade defendidas na Revolução Francesa. Se a liberação envolve a liberação do potencial individual, como é que pararemos os ambiciosos, os enérgicos, os inteligentes, os bonitos e os fortes de tomarem a dianteira, e o que devemos nos permitir fazer para reprimi-los? Melhor não enfrentar essa pergunta impossível. Melhor chamar as velhas mágoas em vez de examinar o que viria de expressá-las. Ao declarar guerra às hierarquias e instituições tradicionais em nome desses dois ideais, portanto, a esquerda consegue obscurecer o conflito entre ambos. Além disso, a ‘justiça social’ é uma meta tão enormemente importante, tão inquestionavelmente superior aos interesses estabelecidos que vão contra ela, que toda ação feita em seu nome está purificada.”

Nesse trecho podemos ter clara a noção idealista de “igualdade”. Marx, no texto “Crítica do Programa de Gotha” já fizera esta crítica ao “igualitarismo”. Aliás, uma crítica que nem mesmo os marxistas – em maioria – conhecem:

“Eliminação de toda desigualdade social e política’, em vez de ‘superação de toda distinção de classe’, é também uma expressão muito duvidosa. De um país para outro, de uma província para outra e até mesmo de um lugar para outro, sempre existirá certa desigualdade de condições de vida, que poderá ser reduzida a um mínimo, mas nunca completamente eliminada. Os habitantes dos Alpes terão sempre condições de vida diferentes das dos povos das planícies. A representação da sociedade socialista como o reino da igualdade é uma representação unilateral francesa, baseada na velha “liberdade, igualdade, fraternidade”, uma representação que teve sua razão de ser como fase de desenvolvimento, em seu tempo e em seu lugar, mas que agora, como todas as unilateralidades das primeiras escolas socialistas, deveria ser superada, uma vez que serve apenas para provocar confusão nos cérebros e porque, além disso, descobriram-se formas mais precisas de tratar a questão.” (MARX, K; 2012, p. 55).

Ainda sim, o filósofo faz uma falsa acusação que “Dessa forma, a ‘justiça social’ torna-se uma exigência precariamente velada pela ‘limpeza completa’ da história que os revolucionários sempre tentaram fazer.”.

Contudo, a impassibilidade do argumento se torna inevitável porque, como dito, a questão da “justiça social” é idealista e fica vedada ao plano do ideal, quando, na realidade, a superação da propriedade privada também é sustentada não no aspecto moral ou metafísico, mas nas relações humanas engendradas.

“Não apenas a vulgarização da economia política foi um processo necessário de reação às primeiras revoluções proletárias. A concepção da Sociologia enquanto ciência autônoma foi igualmente uma reação conservadora às revoluções de 1848. A nova ciência surge com a desintegração da escola ricardiana na Inglaterra, com Herbert Spencer, e do socialismo utópico na França, com August Comte. A criação do “ponto de vista sociológico” insere-se no trajeto de desintegração do pensamento progressista burguês porque traz a possibilidade para os ideólogos burgueses de se estudar os problemas sociais prescindindo de sua base econômica. A totalidade da sociedade humana é assim parcelada em fatos sociais ou esferas isoladas. Dessa maneira, com a nascente Sociologia, a categoria da totalidade fica para trás na história do pensamento burguês.” (CARLI, R. Dois lados de uma mesma moeda: A dissolução da economia clássica e o nascimento da Sociologia, 2009 – Revista Emancipação).

No decorrer do texto do Roger, temos:

“É importante tomar nota desse potencial purificador. Muitas pessoas na esquerda são céticas quanto aos impulsos utópicos; ao mesmo tempo, tendo se aliado sob uma bandeira moralizante, encontram-se inevitavelmente compelidas, inspiradas e afinal governadas pelos membros mais fervorosos de seu secto. Pois a política na esquerda é a política com um objetivo: o seu lugar na afiliação é julgado por quão longe você está preparado a ir pela ‘justiça social’, seja lá como é definida. O conservadorismo – ao menos aquele dentro da tradição britânica – é a política do costume, da transigência e da indecisão resolvida. Para o conservador, a afiliação política deve ser vista da mesma forma que a amizade: não há um propósito primordial, mas mudanças cotidianas de acordo com a lógica imprevisível de uma conversa. Extremistas dentro da afiliação conservadora, portanto, são isolados, excêntricos e até perigosos. Longe de serem parceiros profundamente zelosos num empreendimento em conjunto, são separados por seu próprio senso de propósito daqueles que buscam liderar.”

Um trecho muito problemático, para dizer o mínimo. Primeiro que é inevitável a ingenuidade ou mal-intecionalidade do autor dizer Para o conservador, a afiliação política deve ser vista da mesma forma que a amizade: não há um propósito primordial, mas mudanças cotidianas de acordo com a lógica imprevisível de uma conversa. Extremistas dentro da afiliação conservadora, portanto, são isolados, excêntricos e até perigosos.”.

Mais uma vez, temos aqui, portanto, a visão fragmentária da sociedade. A “justiça social” seria como o bastião das lutas diárias, ou seja, o politicismo explícito e mal-ajambrado da argumentação.

“O politicismo é intrínseco à ordem do capital: a ordem econômica é natural, a ordem política é o que resta para o homem configurar, e esta é decisiva, molda a convivência e realiza a justiça. A economia é [vista como] uma espécie de pano de fundo por si amorfo, ou melhor, uma plataforma virtual com várias possibilidades, que será decidida pela política.” (CHASIN, J; 1999, p. 38).

O texto segue com um parágrafo deveras instigante. Comenta sobre uma questão da historicidade marxiana:

“Marx dispensou os vários socialismos de seu tempo como ‘utópicos’, distinguindo ‘socialismo utópico’ de seu próprio ‘socialismo científico’ que prometia ‘comunismo completo’ como seu resultado previsível. A ‘inevitabilidade histórica’ dessa condição dispensou Marx da necessidade de descrevê-la. A ‘ciência’ consiste em ‘leis do movimento histórico’ delineadas n’O Capital e em outros textos, segundo as quais o desenvolvimento econômico dá origem a mudanças sucessivas na infraestrutura econômica da sociedade, permitindo a nós a previsão de que a propriedade privada irá um dia desaparecer. Depois de um período de tutela socialista – uma ‘ditadura do proletariado’ – o estado ‘murchará’, não haverá lei nem necessidade dela, e tudo será de propriedade comum. Não haverá divisão do trabalho e cada pessoa viverá toda a gama de suas necessidades e desejos, ‘caçando de manhã, pescando de tarde, cuidando do gado à tardinha e se engajando em crítica literária depois do jantar’, como nos dizem em A Ideologia Alemã.”

Marx nunca disse que, inevitavelmente, a propriedade privada vai deixar de existir e o que o Estado ‘definhará’ (aliás, desafio o autor a mostrar-nos isso), mas que é uma tendência histórica que depende da ação política e da luta de classes. É algo bem fácil de perceber se contextualizarmos a obra com o tempo histórico em que foi concebida, visto que Marx e Engels viveram em um momento de gênese da organização da classe trabalhadora, em uma efervescência revolucionária que tomava toda a Europa. A questão é que Marx, diferente de outros teóricos do socialismo, não via no movimento do capital a superação da propriedade privada e do Estado, como se o capitalismo estivesse fadado a ruir, mas sim justamente nessa mobilização revolucionária. Até porque se fosse “uma lei histórica do movimento do capital” a ruína de seu sistema, para quê a revolução da classe trabalhadora? Isto principalmente após a as Revoluções de 1848 e a Comuna de Paris?

Para responder o trecho, finalmente, de forma objetiva, o filósofo húngaro György Lukács, diz claramente e de forma pontual:

“Talvez ainda mais relevante para a teoria marxista da história seja a questão do desenvolvimento desigual, à qual já fizemos referência. Nas notas fragmentárias com as quais conclui a Introdução ao “Rascunho”, Marx se detém, sobretudo, na ‘relação desigual’ verificada no vínculo entre desenvolvimento econômico e objetivações sociais importantes, como o direito e, sobretudo, a arte. Ele sublinha de imediato um momento ontológico-metodológico decisivo, que deve estar no centro da argumentação quando se enfrentam esses problemas: o conceito de progresso. Sua indicação é que “em geral o conceito de progresso não seja concebido com a abstração habitual”. Trata-se, em primeiro lugar, de romper com a abstratividade de um conceito muito genérico de progresso; em última instância, esse conceito seria a aplicação ao curso histórico da extrapolação lógico-gnosiológica de uma ‘ratio’ generalizada de modo absoluto. Quando discutimos sobre essência e fenômeno, tivemos a oportunidade que, segundo Marx, o progresso econômico objetivo, ainda que explicite as faculdades humanas em geral, pode provocar, de modo concretamente necessário, a redução, a deformação etc. – ainda que temporárias – dessas faculdades.” (LUKÁCS, G; 2012, p. 380).

O britânico segue sua linha argumentativa assim:

“Dizer que isso é ‘científico’ em vez de utópico é, em retrospecto, pouco mais que uma piada. A afirmação de Marx sobre caçar, pescar, ser fazendeiro por hobby e crítica literária é a única tentativa que ele faz de descrever como seria a vida sem propriedade privada – e se você pergunta quem lhe dá a arma ou a vara de pescar, quem organiza a matilha de cães, quem mantém as matas e canais, quem tira o leite e cuida dos bezerros, e quem publica crítica literária, tais perguntas serão dispensadas como ‘irrelevantes’, e como questões a serem resolvidas por um futuro que não é da sua conta. E quanto à questão de a imensa organização necessária para essas atividades de lazer da classe alta universal ser possível, numa condição em que não há lei, nem propriedade e portanto nenhuma cadeia de comando, tais questões são triviais demais para serem notadas. Ou, em vez disso, são sérias demais para serem consideradas, e portanto continuam despercebidas. Pois é preciso apenas a menor avaliação crítica para notar que o ‘comunismo completo’ de Marx contém uma contradição: é um estado em que todos os benefícios da ordem legal ainda estão presentes, mesmo embora não haja lei; no qual todos os produtos da cooperação social ainda existem, embora ninguém desfrute de direitos de propriedade que até aqui têm sido o único motivo para produzi-los.”

Marx não é um coletivista e nem um “anarquista” de final de festa. Como diz o professor Erik Gontijo:

“Ao contrário, toda a sua obra afirma a necessidade de se emancipar os indivíduos das limitações impostas a eles pelas classes sociais, mercado, divisão do trabalho, etc. Mas o individualismo de Marx não se confunde com o burguês, que isola o indivíduo no egoísmo (como algo próprio de sua “natureza”) e o contrapõe à sociedade. O mesmo quanto ao humanismo: enquanto aquele que procede da mentalidade burguesa é idealista, utópico, egoísta e reflete o fetichismo mercadológico dos “homens de igual valor” e a tolerância do ecumenismo do dinheiro, o humanismo marxiano afirma a emancipação dos indivíduos em uma sociedade autogerida.

Onde não cabe, evidentemente, nem coletivismo reacionário, nem coletivismo estatal, burguês. Tomar o Estado é necessário simplesmente porque detém poder material, que não ficará sobre o muro no caso de uma revolução. É preciso rachar o Estado e voltar seu poder contra aquilo para o qual ele existe como protetor. Senão, fiquem aí sonhando com suas miseráveis comunidades hippies.” (GONTIJO, E; 2017).

O texto prossegue de forma questionável sobre a História:

“A natureza contraditória das utopias socialistas é uma explicação da violência envolvida na tentativa de impô-las: é preciso força infinita para obrigar as pessoas a fazerem o que é impossível. E a memória das utopias pesou sobre os pensadores da Nova Esquerda dos anos 1960, e sobre os esquerdistas americanos que adotaram a sua agenda. Não é mais possível se refugiar em especulações etéreas que contentaram a Marx. Pensamentos reais são necessários para que acreditemos que a história pende ou deve pender para uma direção socialista. Daí a emergência dos historiadores socialistas, que diminuem sistematicamente as atrocidades cometidas em nome do socialismo, ou botam a culpa pelos desastres em forças ‘reacionárias’ que impediram o avanço do socialismo. Em vez de tentar definir as metas da liberação e da igualdade, os pensadores da Nova Esquerda criaram uma narrativa mitopoética do mundo moderno, na qual as guerras e genocídios foram atribuídos àqueles que resistiram à ‘luta’ justiceira pela justiça social. A história foi reescrita como um conflito entre o bem e o mal, entre as forças da luz e as forças das trevas. E, por mais nuançada e enfeitada que seja por seus muitos expoentes brilhantes, essa opinião maniqueísta permanece entre nós, consagrada no currículo escolar e na mídia.”

Ora, “a emergência dos historiadores socialistas, que diminuem sistematicamente as atrocidades cometidas em nome do socialismo” sequer o autor nos fornece um exemplo concreto. Uma afirmação arbitrária que nem merece perder tempo. Inclusive, o historiador britânico Eric Hobsbawm comenta logo no inicio de um texto intitulado “Renascendo das Cinzas”. Encontra-se no livro organizado por Rubin Blackburn e lançado no Brasil sob o título “Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo”.

E esta é uma abordagem plausível, pois o termo, o conceito, o programa, as realizações do socialismo e das políticas socialistas não constituem simples dados objetivos como, por exemplo, a localização de Londres no tio Tâmisa, geograficamente oposta aos Países Baixos, mas sim construções mentais. São nomes, modelos, rótulos que usamos para procurar compreender a situação na qual se encontra a humanidade desde a era das revoluções no final do século XIX e no começo do XX e que damos a certas tentativas de transformar e/ou melhorar a sociedade.” (HOBSBAWM, E; 1992).

Outro filósofo húngano, István Mészáros, comenta acerca dessa  história “reescrita como um conflito entre o bem e o mal”:

“Todos nós temos consciência da desintegração do pensamento e do conhecimento num número crescente de sistemas à parte, cada qual mais ou menos autossuficiente, com sua própria linguagem, e não assumindo a responsabilidade de saber ou preocupar-se com o que vai além de suas fronteiras.” (MÉSZÁROS, I; 1981, p. 269).

O texto termina de forma rasa, sem embasamento e afirmações ruins e injustificadas:

“A assimetria moral, que atribui à esquerda um monopólio da virtude moral e usa ‘direita’ sempre como um xingamento, acompanha uma assimetria lógica, a saber, uma presunção de que o ônus da prova está sempre com o outro lado. Esse ônus nem pode ser exonerado. Assim, nos anos 1970 e início dos 1980, quanto as teorias de Marx estavam sendo recicladas como a verdadeira explicação dos sofrimentos da humanidade sob regimes ‘capitalistas’, era raro encontrar qualquer menção nos periódicos de esquerda às críticas feitas aos textos de Marx no século anterior. A teoria de Marx sobre a história havia sido questionada por Maitland, Weber e Sombart; sua teoria do valor-trabalho por Böhm-Bawerk, Mises e muitos outros; suas teorias da falsa consciência, alienação e luta de classes por uma gama de pensadores, de Mallock e Sombart a Popper, Hayek e Aron. Nem todos esses críticos podiam ser postos à direita no espectro político, nem todos eram hostis à ideia de ‘justiça social’. Ainda assim, nenhum deles, até onde pude descobrir quando vim a escrever este livro, recebeu qualquer resposta da Nova Esquerda que fosse mais que uma zombaria.”

A primeira afirmativa é que a esquerda tem o “monopólio da virtude moral e usa ‘direita’ sempre como um xingamento.”. Vejamos o que Friedrich Engels nos fornece de argumento no livro “Anti-During”:

“De povo para povo, de época para época, as ideias de bem e de mal variaram de tal modo que, muitas vezes, se revelaram contraditórias. Mas, objetar-se-á, o bem não é o mal e o mal não é o bem, se se confunde o bem e o mal, desaparecem todas as formas de moralidade e cada um pode agir como bem entender. Despojada de toda a solenidade sibilina, é bem essa a opinião do sr. Duhring. Mas, apesar de tudo, a coisa não é assim tão simples. Se o fosse, nunca se discutiria o bem e o mal, todos saberiam o que é o bem e o que é o mal. Ora, que passa atualmente nesse campo? Que moral nos pregam hoje? É, em primeiro lugar, a moral feudal-cristã, herdada de séculos de fé e que se divide essencialmente em moral católica protestante, sem prejuízo de subdivisões novas que vão da moral jesuítica e da protestante ortodoxa até à moral latitudinária. Ao lado dela, figura a moral burguesa moderna e, a par desta, a moral do futuro, a do proletariado, de modo que, passado, presente e futuro fornecem, apenas em relação aos países da Europa, três grandes grupos de teorias morais, simultânea e concorrencialmente em vigor.” (ENGELS, F. Global, 1986).

A segunda afirmativa é: “A teoria de Marx sobre a história havia sido questionada por Maitland, Weber e Sombart”. Só que Max Weber, em seu tempo, possui uma filiação distinta: o sociólogo alemão está dentro dos limites do chamado neokantismo. Ele herda o seu resoluto relativismo subjetivo. Em confronto com o determinismo incondicional de Durkheim, temos aqui um individualismo que foi caracterizado por Mészáros como a “glorificação do relativismo e da arbitrariedade subjetiva”. Weber articulou seu pensamento tendo em mente o socialismo como principal adversário.

“Weber é claro em seu intento: reduzir Marx à “modéstia da hipótese”. O materialismo histórico-dialético é transformado em mera projeção ideal, em simples construto lógico. Sob a ótica de Weber, Marx teria criado conceitos lógicos, não importa que o fundador do materialismo moderno tenha dito que as categorias são formas de ser, determinações da existência. A estratégia de transformar Marx em uma “sociologia” é providencial para manipulá-lo, colocando-o em pé de igualdade com as outras centenas de sociologias que são produzidas nos quatro cantos do mundo. Amesquinha-se o método dialético-materialista para enquadrá-lo na investigação das disciplinas parciais. É preciso rebaixar Marx a apenas mais uma entre tantas explicações causais possíveis [...] Substitui-se o ponto de vista de classe pelo ponto de vista subjetivo. Marx deixa de ser o teórico da classe trabalhadora e transforma-se no teórico de seus próprios valores subjetivos, e Weber oportunamente deixa de ser um pensador burguês, fazendo-se pensador de si mesmo.” (CARLI, R; 2013, p. 90).

A terceira é: “sua teoria do valor-trabalho por Böhm-Bawerk, Mises e muitos outros; suas teorias da falsa consciência, alienação e luta de classes por uma gama de pensadores”. Uma tonelada de erros. A começar que “luta de classes” não é uma opinião teórica ou formulação arbitrária apenas para satisfação de ego. Vejamos, por exemplo, se a “luta de classes” é ou não uma “invenção”, segundo Carl Menger, um dos pioneiros do marginalismo:

“Com isso surge a necessidade de uma previdência - que a sociedade assegure proteção legal aos indivíduos que conseguiram apossar-se legitimamente da referida parcela de bens, contra os ataques dos demais indivíduos. Chegamos assim à origem econômica de nossa ordem jurídica atual: a proteção à propriedade, que constitui o fundamento da propriedade.” (MENGER, Carl, 1983, p. 271).

“A economia política clássica, enquanto ideologia da burguesia liberal em ascensão (que desenvolveu os argumentos do direito natural com o fim de justificar a propriedade móvel em detrimento da propriedade fundiária feudal), não podia renunciar ao conceito de trabalho. Nos séculos imediatamente precedentes, a consciência burguesa considerava a propriedade capitalista como "conquistada" através do trabalho, à diferença da propriedade feudal, fruto da mera apropriação. (...)

Com esta dedução da origem da propriedade privada a partir do trabalho, a propriedade burguesa aparece como legítima em face da propriedade feudal, contra a qual está em luta. Mais ainda: segundo esta concepção, o burguês deve sua propriedade a seu próprio trabalho e, por isto, pertence, em maior ou menos medida, à classe dos trabalhadores. Saint-Simon não pode liberar-se ainda desta ideia e incluiu os empresários industriais na classe trabalhadora. [...] Mas, se o princípio do trabalho defende o interesse da burguesia contra a propriedade feudal, ele passa a representar, na época do capitalismo maduro e diante dos embates do proletariado, um perigo para a propriedade burguesa. Nisto reside a principal razão da mudança de posição da teoria econômica burguesa.” (KOFLER, Leo., 2010, p.229-231).


Considerações finais:


Por fim, não tenhamos problemas para aceitar críticas a Marx e o marxismo em geral, eu mesmo faço várias (e marxistas sempre fazem), não apenas pela amplitude da obra cuja é passível de assinalações, bem como a um amplo leque de marxistas; porém, ao menos os críticos devem ter a decência de consultar fontes que dê credibilidade teórica e rigor metodológico.

Muitos críticos insistem em dizer que Marx está morto e intelectualmente falido (vide Mario Bunge), mas todo mundo acha pelos em casca de ovo para poder criticá-lo. Muito se vê a busca por superação das condições sociais atuais, mas poucos têm a seriedade no estudo e na prática.


Notas:



Referências bibliográficas:

BLACKBURN, R. Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

CARLI, Ranieri. György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Lumen  Juris, 2013, p. 90.

CHASIN, José. “Hasta Cuando”. In: A miséria brasileira, op. cit., p. 124.

CHASIN, J. Rota e prospectiva de um projeto marxista. In: Ensaios Ad hominem I, Santo André, 1999, p. 3).

COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 99-107.

ENGELS, F. Anti-Duhring. In: Sobre literatura e arte. 3ª ed. São Paulo: Global, 1986.

KOFLER, Leo. História e dialética: estudos sobre a metodologia da dialética marxista. Trad. José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010, p.229-231.

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 380-381.

MARX, K. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo. Boitempo. 2012, p. 55.
MENGER, Carl. Princípios de economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 271.

MÉSZÁROS, I.Marx: a teoria da alienação. São Paulo. 1981, p. 269.