INTRODUÇÃO
A
foto inicial é o nosso objeto de crítica. Não apenas, compreender a sua
epistemologia, por assim dizer, mapeá-la de forma “impessoal” de como a
“subjetividade” desse pensamento é mais pueril e tão decadente quanto a
tentativa falha de “moralizar”.
Quando
o filósofo alemão Jürgen Habermas falou em “razão comunicativa” através da
intersubjetividade humana em que os seres através da linguagem procuram
entendimento entre si, seja para as relações “institucionais” (por exemplo, o
“juramento médico”), seja para as relações pessoais (por exemplo, resolver
pequenos conflitos de interesses mútuos), o pessoal elevou a enésima potência –
ainda que sem saber disso – para um “irracionalismo da razão”.
É uma teoria que se fundamentou no conceito de ação, entendida como a
capacidade que os sujeitos sociais têm de interagirem intra e entre grupos,
perseguindo racionalmente objetivos que podem ser conhecidos pela observação do
próprio agente da ação. Habermas priorizou, para a compreensão do ser humano em
sociedade, as ações de natureza comunicativa, as ações referentes à intervenção
no diálogo entre vários sujeitos. Habermas era da assim chamada “Escola de
Frankfurt” das ciências humanas.
No
sentido marxiano, a razão, em contrapartida, entendida como uma figura histórica
e socialmente constituída reproduz, de certa forma, esse mesmo sentido. É, por
isso, reprodutora de sentido e nunca sua usina originária como ocorre na
atualidade em que se vive no interior de um verdadeiro imperialismo da
subjetividade.
A
organização do mundo pela cabeça, pela razão, entendimento, ou coisa que o
valha, seja em que variante for – de Kant a Husserl –, pode ser feita de vários
modos; em todas, no entanto, restará algo de fora do mundo, seja uma opacidade
intransponível, e a cabeça organiza o mundo apenas em parte, restando ela
própria , àquela que parte do sujeito para o exterior – em Platão, Agostinho e
Descartes. Basta que lembremos do “Penso, logo existo” do
francês Descartes.
Materialismo
ou idealismo?
Feita
uma introdução ao que seja a “razão” (ainda que rasteiramente), prosseguirei o
texto de forma mais direta. Quando mencionei a questão do racionalismo de
Descartes, no seu “Penso, logo existo”, aqui se instaura uma coisa muito
importante que pouquíssimas pessoas, até mesmo de dentro da filosofia
compreendem: a inauguração da “liberdade subjetiva”. O que seria isso a partir
da interpretação do racionalismo cartesiano?
De
forma bem resumida e simples, dizemos que o ato de “pensar” para Descartes
pressupõe uma existência de algo que pensa; assim sendo, se há algo que pensa é
porque há uma matéria pensante (e dotada de razão). Se o pensamento é parte
integrante do ser que existe – portanto, pensante – ele tem, em si, a certeza
de sua existência através do pensamento. Em outras palavras, isso tem um
pressuposto fundamental: se o pensamento é íntimo à pessoalidade mais profunda
dela mesma, logo, ninguém a não ser ela própria pode ter acesso ao que ela
pensa. Ainda que alguém abra a cabeça dela com um machado ou passe por um
trator em cima do cérebro, o que está sendo pensado jamais poderá ser impedido
de ser pensado enquanto pensamento; é impossível, todavia, que sejamos
impossibilitados da nossa faculdade do pensar, seja quaisquer que forem as
nossas perversões, etc.
Mas,
isso gera um problema óbvio que na filosofia materialista, ou seja, onde está
também o alvo fatal da crítica empirista (com exceção de Berkeley) – Desde
Locke até os mais contemporâneos passando pelo Hume. Um desses críticos do
chamado racionalismo absoluto – ou que a forma de conhecimento de mundo se
daria apenas pela razão – ou na sua primazia (aqui de modo mais genérico e
comum), foi o próprio Marx. E assim ele diz na Ideologia Alemã:
“Para
os filósofos, deixar o mundo do pensamento para descer ao mundo real é uma das
tarefas mais difíceis que existem. A realidade imediata do pensamento é a
linguagem. Da mesma forma que os filósofos fizeram do pensamento uma realidade
autônoma, também não poderiam deixar de atribuir à linguagem uma realidade autônoma
para fazerem dela o seu domínio privativo. Eis o segredo da linguagem
filosófica, em que os pensamentos têm, enquanto palavras, um conteúdo próprio.
O problema de descer do mundo das ideias ao mundo real reduz- se ao problema de
passar da linguagem à vida.”.
Em
outras palavras, à linguagem está a consciência prática, isto é, à ação que
conduz as nossas subjetividades que se objetivam-se perante o mundo real. Não
obstante que István Mészáros teve muito a dizer sobre isso:
“Todos
nós temos consciência da desintegração do pensamento e do conhecimento num
número crescente de sistemas à parte, cada qual mais ou menos autossuficiente,
com sua própria linguagem, e não assumindo a responsabilidade de saber ou
preocupar-se com o que vai além de suas fronteiras.” (MÉSZÁROS, I; 1981, p. 269).
Subjetivismo
ou objetividade?
O
discurso do indivíduo isolado em que se pretende o seu próprio nariz ser
parâmetro do que seja a realidade, isto é, não existindo mais verdade objetiva
e universal, relativizada e tornada dependente das “narrativas” dos
sujeitos. O discurso que deveria passar o sentido das ideias, torna-se
aqui a estética do que se apresenta, não no que se trata objetivamente como a
concreção conceitual da regência imanente das coisas existentes.
Num
certo sentido, todos nós estamos sujeitos a ficar insatisfeitos uns com os
outros. Homens e mulheres, nas relações simétricas socialmente engendradas.
Schopenhauer fez uma análise brilhante sobre isso: de forma rasteira, mal nós
satisfazemos um desejo ou uma necessidade, logo criamos outros, o que nos torna
para sempre insatisfeitos.
O
ranzinza teve suas “razões” para isso. Schopenhauer – e vale lembrar das
palavras de meu camarada Felipe Lustosa – teve a seguinte percepção: “não
adianta tentar jogar pérolas aos abutres; estão tão desumanizados porque não
conseguem captar a filosofia e ainda voltam as suas cúspides afiadas e seus
cascos contra aqueles que desejam elevar a condição humana, i.e, voltam-se
contra aqueles que desejam reefetivá-los e promovê-los a homens cientes de si e
da natureza que os abarca, preferem o charco, o atoleiro e a lama”.
A
abstração “homem” (aqui no sentido de “ser dotado de um pênis”)
“odiado por comportamentos e atitudes vinculados ao padrão de comportamento de
uma amostragem de homens” tivesse algo de plausível, teríamos que entender uma
problemática: a abstração no sentido de Marx é compreendida como o
primeiro momento da concreção, não é um contorno fixo, mas um nódulo elementar
pronto a se transfigurar no roteiro especificador, singularizador da concreção.
Portanto, não se trata de um procedimento regido por regras formais ou por uma
normatividade arbitrária, mistificadora, como sugere essa “crítica
fuderosa lacrou contra os ômis”.
Concernente
a isso, o amigo Erik tem os seguintes dizeres: “Pois quando o sujeito é
tornado o fundamento da legitimidade e verdade do discurso, todo e qualquer
discurso se torna automaticamente legitimado. Aliás, não há mais como se falar
em legitimidade. Se cada cultura ou indivíduo é o lugar próprio da justificação
e da verdade – e disso resulta uma discordância a mais natural de se esperar -,
o que é que pode servir de critério para avaliar qual está certa e possui
legitimidade ao reivindicar tal e tal direito?”.
Sem
uma crítica racional e objetiva não há avanços nessa matéria. E como o pior dos
mundos possíveis sempre se torna real, por essa via abre-se todo um campo de
oportunidades de cooptação, irracionalismo das lutas – ainda que válidas – ,
justamente o inverso que esse discurso prometia oferecer. Para isso, mais vale
um Rousseau do que um Foucault.
Existe
uma “cultura” machista? Inegável. Tanto que há mulheres que além de
reproduzi-lo, chegam a defendê-lo. Existe, por outro lado, homens que rechaçam
o machismo. Aí já nem tem o “local de fala”, pois “tudo depende do ponto de
vista do observador”. Ou não... O que importa, em primeiro lugar, é a
descrição objetiva dos fenômenos, sua veracidade ou falsidade advém daí e não
da melanina ou do útero.
Em segunda lugar, importará em um grau relativo, caso haja qualquer tipo de
interesse do emissor nas imbricações do fenômeno social em questão que podem
ser proporcionados por vários motivos, dentre eles a posição do locutor na
sociedade que pode ser determinada ou não por atributos biológicos. Isso é
relevante para sabermos de onde vem e quais os interesses da pessoa que emite
um significado aos fenômenos. Contudo, isso por si só não garante que seja
verdadeiro ou falso o conteúdo emitido.
Existiam
escravos a favor e contra a escravidão, existem mulheres contra e a favor ao
feminismo. A posição privilegiado/desprivilegiado, portanto, apenas dá uma
presunção relativa da possível posição a ser tomada pela pessoa, mas nunca uma
presunção absoluta.
Parece óbvio para alguns, mas
vale ressaltar: os indivíduos que formam a classe dominante possuem, entre
outras coisas, também uma consciência e, por conseguinte, pensam que uma vez
que domina como classe e determinam todo o âmbito de um tempo histórico. É
evidente que o façam em toda sua amplitude como consequência. E também dominem
como pensadores, como produtores das ideias sejam, em consequência, as ideias
dominantes de um tempo.
Exemplos
não faltam. Não são nem exceções, mas, regras!
Se
você fala de subjetivismo no identitarismo negro, você é racista; a sua pessoa
se torna a pauta da discussão e você é tachado como tal. No feminismo, se você
faz ponderações – ou, no melhor dos casos, quer “participar” – você é chamado
de machista, “hétero dando pitaco”, “quer xoxota”, etc. No LGBT, é taxado logo de
homofóbico ou “privilegiado”. Percebem que a ideologia dominante opera entre os
dominados (mesmo que este último insiste em dizer o contrário)?
É
óbvio que a experiência subjetiva dos agentes é importante para a compreensão
dos fenômenos, mas é insuficiente, porque tal subjetividade depende de uma
objetividade factual existente e sua genealogia, desenvolvimento e progressão
vão muito além da experiência subjetiva dos agentes nesse fenômeno. O lugar de
fala, portanto, é a supressão da objetividade pela subjetividade tomada em seu
caráter mais profundo. Não se pode negar, por exemplo, espaços em que LGBT’s,
mulheres, etc., merecem destaque para seu protagonismo (outro termo que temos
de tomar cuidado). Assim, porém, mais mulheres na política por si só não
representará mudanças substantivas por si na realidade delas (machismo).
Outra
coisa que a militância irracionalista, desprovida de qualquer materialismo
(para não dizer da mais alta filosofia de nosso tempo: o marxismo) não
compreende, pois, imersos em subjetivismo e solipsismo pueril estão longe de ir
à gênese das coisas. Novamente, como diz Felipe Lustosa:
“O
patriarcado não é um subjetivismo que jorra do homem solipsista como “ato
irrefletido”, como vileza inata ao gênero masculino ou como forma desmedida da
pulsão ferina no indivíduo homem em sociedade contra as mulheres. O patriarcado
é, ontologicamente, todas estas formas da reprodução de um tipo social; antes
de tudo, um reflexo estranhado de uma sociabilidade reificada e mediada pela
produção ampliada e circulação de valores de troca onde o ser humano se
autoproduz como objeto. Ademais, o complexo da ideologia operando à
verossimilhança do complexo do trabalho alienado e plasmando pôres-teleológicos
secundários, são antes disto, (ainda da perspectiva da centralidade do
trabalho) a entificação das relações de produção anteriores àquelas relações de
assalariamento expressas pelo capitalismo, que tinham no desfruto da humana e
no mais-trabalho (no barbarismo, no escravagismo e na servidão e a família
patriarcal) sua explicitação concreta.”
Considerações
quase finais
Portanto,
não é um “ser por ser” ou “querer ser” como se o homem fosse um oásis da
sociedade. É uma estruturação ontogenética, como colocou Engels em sua A
origem da família, do Estado e da propriedade privada. Mesmo que os seres
reproduzam isso sem a consciência plena do que fazem, eles mesmos podem,
certamente, ser “transformados”. Porém, isso não paira sob as cabeças como um
éter a vigorar como fogo no pavio e se espalha; é uma agua que bate na pedra
até furá-la lentamente, porque as estruturas de Estado, as dinâmicas
capitalistas e suas instituições (como a cultura, religião, moral e a política)
concentram-no objetividades que sobrepõem sua racionalidade.
Diferente
dessa compreensão totalizante do mundo, os movimentos que estão compelidos a um
turbilhão frações que não encontram seus nexos causais, uma vez que quando
tentar abranger ou dar conta de compreender a alguma manifestação social ou a
algum epifenômeno, precisa multifacetá-lo em micro instâncias a fim de
dinamitar o todo que expressa e fracionar as relações do ser. Os fundamentos da
forma de como as coisas decorrem para esses movimentos “reformadores” ou
“desconstruidores de conceitos”, são sempre incompletos, relativizadores,
irracionalistas, despidos de historicidade, materialismo e da dialética, ou
seja, tudo daquilo que é mais avançado ao desvelamento da essência do objeto: a
compreensão ontológica e crítica do mundo real.
A
legitimação da lógica patriarcal e o machismo feudal, dos laços de
vassalagem e de suzerania médios; a abnegação da mulher ao lar e aos costumes
domésticos e, não obstante, à serventia por parte desta de corpo e alma ao seu
amo, possuem consolidações na sociedade burguesa.
A
crítica ao irracionalismo intelectual
Não
passando daquilo que Santo Agostinho chamou de “o Deus que habita em
mim” em suas Confissões. O Deus é o meu “lugar de fala”
para ser idiota, no seu livre-arbítrio, desde que o ser social renascentista
rompeu com o tomismo e com a escolástica. As “revelações de Deus” e a concepção
teocêntrica de cosmos e com a noção encanecida que fosse uma criatura concebida
por um primeiro motor-imóvel de Aristóteles, municiado de um teleologismo
apriórico e transcendental ainda é a epistemologia dessas “novas-esquerdas” porque
aqui se encontra o modelo antropocêntrico de cosmos: burguês,
individualista, laicizado, ainda que se faz racionalizado.
O
ser social da modernidade é este típico dominado pela ideologia pequeno-burguesa,
surgido dos escombros de um mundo medieval e feudalizado, ainda que negue isso
até as profundezas do Hades. A mais profunda alienação num esgoto onde nos
afogamos todos.
Para
explicar mais sucintamente sobre essa ideologia produtora e reprodutora da
matriz causal dessa decadência intelectual, o filósofo húngaro György Lukács,
dirá:
“Cada
vez mais, a sociedade se apresenta ao pensamento burguês como um amontoado de
coisas mortas e relações entre objetos, em lugar de nele se refletir como é, ou
seja, como a reprodução ininterrupta e incessantemente cambiante de relações
humanas. O clima mental assim criado é muito desfavorável para o pensamento
dialético (...) A maior parte dos intelectuais encontra-se, com efeito, muito
afastada do processo de trabalho efetivo que determina a estrutura verdadeira e
as leis de evolução da sociedade; estão tão profundamente ajustados na esfera
das manifestações secundárias da produção social - que consideram aliás como
fundamentais - que a descoberta das relações humanas mascaradas pela alienação,
torna-se para eles coisa impossível. Em definitivo, é tão grande o abismo entre
a realidade e o pensamento, que só reflete suas manifestações superficiais, que
toda transformação na evolução social se apresenta para o pensamento sob o
aspecto de uma ruptura inesperada e apenas pode provocar uma série contínua de
crises.” (LUKÁCS)
Importante
constatar que o “comportamento” do ideal burguês, ou seja, na sociedade
burguesa, não é, nem será sinônimo de “estar na classe burguesa”. Trata-se de
formas de reprodução do real na sua práxis desagregada. Nem deveria haver
novidade nisso. Segundo Lukács, a burguesia à medida que se transfigura de
classe revolucionária em classe reacionária (mantenedora da ordem sistêmica,
principalmente após 1848), se comprometeu a engendrar uma época de decadentismo
ideológico e de assalto à razão os quais estão diretamente ligados pelas
relações de produção capitalistas.
Neste
imenso um complexo de alienações e por uma gama de fetichismos que possuem seu
núcleo duro calcado no fenômeno do irracionalismo, por sua vez, inextrincável
ao metabolismo societário do capital e à teia ideológica que estão ligados, mal
se atentam que . Bastam-nos ver as propagandas de empresas dos mais diversos
seguimentos – desde cosméticos até fast foods – com slogan
“inclusivo” para abocanhar das pautas identitárias seus novos
“mercado-consumidores” que se sentem “representados”.
Interessa-nos
discutir, vale frisar, a primeira e fundamental forma de censura. Porque ela
tem um apelo estético atraente que até tem verniz de racional;
por isso, convence e arregimenta um amontoado de gente com supostas boas
intenções. É estético porque não importa o que você diga, fundamente, etc., o
que lhes interessam é “como você é”.
Próximo
passo
Quando
Lênin escreveu que “sem teoria revolucionária não pode haver movimento
revolucionário”, ele já tinha plena consciência da questão da práxis social dos
sujeitos. Não é a consciência que define a existência dos homens, mas a
existência e as relações de produção efetivas que cunham, em primeira
instância, as diversas formas de consciência e de interações recíprocas entre
seres sociais, inclusive as estranhadas.
E
ainda lembrando Lênin, as mulheres serão protagonistas de sua própria emancipação,
mas isso não se dará apenas pela “força subjetiva da ideia”, nem por “locais de
fala” – eufemismo para sectarismo liberal que foge e muito a qualquer
materialismo. Sobre isso, a emancipação humana, em sua concretude, não
será feita ou por homens ou por mulheres independentes de seus comportamentos,
mas sim por “proletários de todo mundo” que estarão unidos, juntos
para a ruptura do velho mundo, não em sua retração civilizacional.