O
homem só pode – e deve – ser compreendido a partir das relações sociais
engendradas. Como a sociedade produz o ser humano enquanto ser, assim produz a
sociedade. O ser, nesse sentido, sempre foi (e ainda é) facilmente seduzido a
aceitar determinada forma do ser humano como sendo uma essência.
Há
de ser ressaltar: na medida em que isso acontece, o homem define a sua
humanidade em termos da sociedade com a qual se identifica. Sempre houve seres
olhando para além das dimensões da sua própria sociedade.
O
mais importante filósofo alemão, Karl Marx, se preocupou também em sempre
distinguir o homem dos animais por causa da consciência, da religião, etc. Mas
na realidade os homens começam a produzir os seus meios de sobrevivência, pois,
“Enquanto os homens produzem os seus meios de vida,
produzem indiferentemente a sua própria vida material”. (Karl Marx)
Inclusive,
o filósofo francês Jean-Paul Sartre também contesta que o homem seja
pré-determinado, possuindo uma “natureza
humana” que lhe condicione de forma determinística a ser apenas aquilo que
se já é, tolhendo-lhe da liberdade de ser de outro modo. O homem não tem uma
essência que precede sua existência, mas, pelo contrário, sua existência
precede sua essência. Ele assim se expressa:
“O que
significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em
primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só
posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não
é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente
será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não
existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la.” (Jean-Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo)
A questão
da “natureza humana”, fundamentalmente, é ‘legitimada’ sob égide capitalista. Para
argumentar que capitalismo é inevitável e outras patranhas mais, seus defensores
associam ser humano à cobiça, à rivalidade, a ostentação e a famigerada “competição”.
Marx, com todo seu primor, desmontou tal crença divinal nefasta.
Diante
do carcomido “ceticismo” e da estupidez epistemológica aqui se encontram alguns
sujeitos a verem a aparência com roupagem milagrosa da “selvageria” humana. A distorção
da realidade, isto é, a alienação
enquanto ser provém das masturbações que ainda não lhe tiraram a virgindade
social.
A
soturna visão de Thomas Hobbes no “Leviatã”
sobre a sociedade humana cai no mesmo equivoco da análise em causa própria da
burguesia sobre a natureza humana. Sociedades pré-agrícolas, organizadas em
torno de um primitivo modo de produção, estavam longe de ser “imundas, brutais e curtas” tal como ele
pensava de acordo com as conclusões dos modernos estudos históricos e
antropológicos.
O ser
humano, com sua criação, encontra-se em relação com este ambiente social, com a
sociedade, modificando a sua própria ação, desenvolvendo as suas capacidades e
suas produções; numa palavra deve entrar na história. A criação do homem é uma
criação da sua própria vida, uma criação progressiva. Assim das diversas
relações espirituais, políticas, etc. Não há, absolutamente, uma história
própria, qualquer desenvolvimento próprio; mas são os homens que
modificam com esta realidade por eles criada, também o seu pensamento e os
produtos do seu pensamento. Até porque “Não
é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”.
O que
nos preocupa mais que esta “natureza humana”? De acordo com a lógica capitalista, arrumada
sobre seus “agentes”, os seres humanos são fundamentalmente mesquinhos, seres
egocêntricos que somente podem ser compelidos para a ação com a promessa de
lucro pessoal. (Pobres catadores de lixos e mendigos, desempregados e demais
marginalizados.) Essa interpretação concebe o capitalismo na ânsia do “livre-mercado”,
ou seja, um subproduto medíocre natural desta ambição, à sede social-darwinista
por domínio e extravagância material. Assim, qualquer sistema que ignore esta
“natureza humana” essencial está condenado à corrupção no topo e à letargia na
base.
Isso
nada mais passa da propaganda burguesa concernente à história do socialismo
reforçada neste entendimento torpe catequisado nas missas dominicais da TV com
os apresentadores “de boa-fé” na autoajuda do desespero real.
O
argumento da “justiça” na propriedade privada foi sempre a pedra angular do ‘liberalismo’.
Se o direito à propriedade privada fosse ameaçado, argumentaram os bons
picaretas “liberais”, a liberdade seria destruída. Se a possibilidade de
acumulação ilimitada de capital fosse reduzida, ou o direito de herança
condicionado, as restrições à busca do enriquecimento teriam consequências
catastróficas: o crescimento econômico seria sacrificado, a inovação
tecnológica inibida e o espírito de iniciativa amputado. A sociedade estaria
condenada ao atraso, à estagnação e até à preguiça. (Ou seja, nada melhor que
criar o inferno para punir “hereges” do que saber da sua existência.)
Na
sociedade contemporânea, a condição de classe é determinada pelo direito de
herança, na mesma proporção em que em outras épocas era garantida pelo berço
familiar. Pior; na maior parte do mundo, as oportunidades de ascensão social ou
permaneceram estagnadas ou vieram diminuindo no último quarto de século. A
geração mais jovem desconfia que não vá melhorar suas condições de vida,
comparativamente, às de seus pais.
BRILHANTE! Assim a “natureza humana”
perde seu “egoísmo”, não é mesmo?
A
mobilidade social foi reduzida, tanto no centro como na periferia do
capitalismo. As possibilidades de melhorar de vida pelo talento ou pelo esforço
vieram sendo reduzidas. A inteligência ou a perseverança, a criatividade ou a
audácia são aptidões que podem ser encontradas em todas as classes. Porém, a
ironia é que será encontrada, com maior frequência, entre os trabalhadores.
Por
isso, a ideologia que consiste em levar o liberalismo às últimas
consequências em termos de teoria, exatamente como nenhum liberal conceberia
levar a sério na prática. Pois não passa de especulação de ideias da parte de
quem não possui capital com especulação no mercado. Brinquedo sub-acadêmico da
pequena-burguesia desejosa de um capitalismo para ‘micro-empresários’... Um mar
onde as piabas não somente nadam em meio a peixes e tubarões, como ainda mandam
neles.
Recordaremos
o que o bom e velho Marx nos diz na “A
Ideologia Alemã”:
“(...) A propriedade privada aliena não apenas a individualidade do
homem, mas também a das coisas. O solo nada tem a ver com a renda territorial,
a máquina nada tem a ver com o lucro. Para o proprietário de terras, o solo
significa unicamente renda territorial; ele arrenda suas parcelas de terra e
embolsa a renda; uma qualidade que o solo pode perder sem perder qualquer uma
de suas qualidades inerentes, sem perder, por exemplo, uma parte de sua
fertilidade; uma qualidade cuja proporção, e até a existência, depende de
relações sociais que são estabelecidas e superadas sem a participação do proprietário
fundiário individual. O mesmo se dá com a máquina. Shakespeare já sabia, melhor
do que o nosso teorizador pequeno-burguês, quão pouco o dinheiro, a forma mais
universal da propriedade, tem a ver com a singularidade pessoal, e o quanto lhe
é, inclusive, contraposto(...)”. (Ideologia
Alemã, pp. 223-5, ed. Boitempo)
Convém
lembrar que a essência humana da natureza existe unicamente para o homem, e a
existência natural do homem torna-se para ele em existência humana; a natureza
transforma-se em homem. Assim a sociedade é a unidade essencial que chegou à
sua realização, estabelecendo a identificação do homem. Como a natureza,
alcançando a verdadeira ressurreição da natureza, realizando o naturalismo
completo do homem e o humanismo completo dela.
Esses
argumentos de “natureza humana”, “egoísmo por natureza”, etc. não têm, no
entanto, o mais mínimo fundamento
científico. Em oposição à visão de uma natureza humana inflexível, Marx
nunca defendeu a visão simétrica e ingênua de uma humanidade generosa e
solidária. Nem fundamentou a necessidade da igualdade social em uma suposta
igualdade natural. O que Marx afirmou é que a natureza humana tem dimensão
histórica e, portanto, se transforma.
O
darwinismo deixou-nos um extraordinário alerta. A vida é delicada e a extinção
não é excepcional. A extinção é o padrão mais regular. Porém, o darwinismo
exerceu também uma influência duradoura – e desastrosa – sobre as ciências
sociais. Os nacionalismos exaltados das potências europeias, no final do século
XIX, apropriaram-se abusivamente da ideia de uma competição individual pela
sobrevivência dos mais adaptados, para justificar a conquista de um Estado
sobre outros. Não fosse isso o bastante, defenderam a ideia abjeta do domínio
de uma civilização sobre outras e, no limite mais repulsivo do nazismo e o
fascismo, de uma suposta raça superior sobre outras. Os mais desenvolvidos
economicamente seriam os mais capazes.
E assim
Marx, pontualmente, comenta:
“O que me diverte em Darwin, o qual voltei a examinar, é ele dizer que
aplica a teoria malthusiana ‘também’ às plantas e animais, como se a graça toda
do Senhor Malthus não consistisse em que ela ‘não’ é aplicada a plantas e
animais, mas tão somente a homens - com a progressão geométrica - em
contraposição a plantas e animais. É notável como Darwin consegue reconhecer
entre bestas e plantas a sua própria sociedade inglesa com sua divisão do
trabalho, concorrência, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a ‘luta pela
existência’ malthusiana. É o “bellum omnium contra omnes” de Hobbes, e lembra Hegel na ‘Fenomenologia’,
onde a sociedade burguesa figura como ‘reino animal do espírito’, ao passo que,
em Darwin, o reino animal figura como a sociedade burguesa.”(...) (MARX, K. Carta para F. Engels (1859). apud
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013, p.
459).
As
ideias dominantes em qualquer época são as ideias da classe dominante, e quando
esta classe pode decidir o destino social e econômico dos dominados, espera-se
que os últimos adaptem sua ‘natureza’ a estas circunstâncias. Os seres humanos
são criaturas sociais e, para obter a produção social, eles incorporam seus
esforços individuais dentro da superestrutura cultural da sociedade em que
vivem.
Em
suma, meus amigos, a história foi – e é – um processo cultural de readaptação
da humanidade. O ser humano é um ser aberto ao mundo e sempre será o que ele
fizer de si mesmo. Essa capacidade de autotransformação foi uma das constantes
que oferecem coerência interna à própria história, e permite a verdadeira compreensão.
Por isso, a esperança triunfará! UNI-VOS!
Referências
bibliográficas:
MARX, K. (Carta
para F. Engels (1859). apud LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São
Paulo: Boitempo, 2013, p. 459)
MARX, Karl. (“Ideologia
Alemã”, pp. 223-5, ed. Boitempo)
SARTRE, Jean-Paul, (“O
existencialismo é um humanismo”)