Introdução
Um
artigo recentemente foi traduzido pelo site Xibolete,
intitulado “O que é a esquerda?” do
filósofo conservador britânico Roger
Scruton e que foi republicado pela página Universo Racionalista.
E o propósito deste texto aqui é respondê-lo de forma crítica. Há,
indubitavelmente, uma carência e necessidade de um bom debate acerca de temas
que, outrora, ficam apenas em especulações de sentimentalismos ruins. Quando
filosofias se ancoram ao senso comum, viram ideologias ou passam a constituir
retalhos delas.
O
artigo tem muitos problemas. Em algumas passagens ele dá o ar de “sugerir” uma
natureza humana à sociabilidade das condições materiais para a pobreza e
aristocracia postas ali. Outro pressuposto problemático é o “igualitarismo”
marxista. O autor comenta que há uma necessidade à priori dessa igualdade
através da abolição da propriedade privada, pois “Em toda esfera em que a posição social dos indivíduos puder ser
comparada, a igualdade é a posição padrão.”.
A resposta
ao argumento do filósofo
O texto
não é longo, entretanto, faz afirmações complexas e conjecturas pouco plausíveis
ao decorrer do argumento. Assim ele é iniciado:
“A posição
de esquerda estava já claramente definida no tempo em que a distinção entre
esquerda e direita foi inventada. Esquerdistas acreditam, com os jacobinos da
Revolução Francesa, que as benesses deste mundo são injustamente distribuídas,
e que a falha está não na natureza humana, mas em usurpações praticadas por uma
classe dominante. Eles se definem, em oposição ao poder estabelecido, como
paladinos de uma nova ordem que retificará a queixa antiga dos oprimidos.
Dois
atributos da nova ordem justificam que ela seja buscada: a liberação e a
‘justiça social’. Ambas correspondem grosso modo à liberdade e igualdade
defendidas pela Revolução Francesa, mas apenas grosso modo. A liberação hoje
defendida pelos movimentos de esquerda não significa simplesmente a liberdade
contra a opressão política ou o direito a fazer o que se quer sem perturbação.
Significa emancipação contra ‘estruturas’: das instituições, costumes e
convenções que moldaram a ordem ‘burguesa’, e que estabeleceram um sistema
compartilhado de normas e valores no coração da sociedade ocidental. Até
aqueles esquerdistas que se afastam do liberalismo dos anos 1960 consideram a
liberdade como uma forma de soltura de restrições sociais. Muito de sua
literatura é devotado a desconstruir tais instituições como a família, a
escola, a lei e o estado-nação através dos quais a herança da civilização
ocidental tem sido passada para nós. Essa literatura, vista em sua forma mais
fértil nos textos de Foucault, representa como ‘estruturas de dominação’ o que
outros vêem meramente como instrumentos da ordem civil.”
O
autor começa com dois pressupostos básicos: 1) “natureza humana”, ou seja, as relações
sociais e de produção já são pré-determinadas; e 2) trata a “justiça social”
como um ideal metafísico e de profunda periculosidade à tradição republicana.
Porém,
tais pressupostos são, em resumo, simplistas e falaciosos. Scruton fala em “emancipação
contra ‘estruturas’” e costumes e convenções que moldaram a ordem ‘burguesa’”. Mas,
por exemplo, em Marx, o indivíduo só se
realiza e efetiva seus potenciais no interior da sociedade, na ampliação das
relações do indivíduo com o mundo. E, também, afirma a necessidade de se emancipar
os indivíduos das limitações impostas a eles pelas classes sociais,
mercado, divisão do trabalho, etc.
O filósofo
usou de Foucault para seu argumento dizendo que as “estruturas de dominação” é a representação do qual são “instrumentos da ordem civil” para destruição
da “família”, etc. Carlos Nelson Coutinho, pontualmente, critica essa visão
reducionista com vestimenta do idealismo ingênuo:
“O conceito de ‘estrutura’ é a ponte
através da qual passa-se do epistemologismo neopositivista à ‘ontologia’
estruturalista. Isso implica, desde logo, a conversão do idealismo subjetivo
dos primeiros em uma nova e abstrusa forma de idealismo objetivo. Como vimos,
no neopositivismo, a racionalidade e o significado dependem exclusivamente da
sintaxe lógica da língua. Além disso, para eles, o estabelecimento dessa
sintaxe é um fato ‘convencional’, arbitrário, que depende de uma decisão
puramente subjetiva.” (COUTINHO, N; 2010,
p. 99).
Nos
parágrafos seguintes, Scruton escreve:
“A liber[t]ação das vítimas é uma causa sem fim,
pois novas vítimas sempre aparecem no horizonte quando as últimas escapam para
o vazio. A libertação das mulheres da opressão masculina, dos animais do abuso
humano, dos homossexuais e transexuais da ‘homofobia’, até de muçulmanos da
‘islamofobia’ – todas essas causas foram absorvidas às agendas de esquerda mais
recentes, para serem consagradas em leis e comitês supervisionados por um
oficialismo censório. Gradualmente, as velhas normas de ordem social foram
marginalizadas, ou até penalizadas como violações de ‘direitos humanos’. De
fato, a causa da ‘libertação’ viu a proliferação de mais leis do que jamais
foram inventadas para suprimi-la – basta pensar no que é agora codificado na
causa da ‘não-discriminação’.
Similarmente, a meta da ‘justiça social’ não é mais
igualdade perante a lei, ou a igual reivindicação aos direitos de cidadania,
como eram defendidos no Esclarecimento. A meta é um rearranjo abrangente da sociedade,
de forma que privilégios, hierarquias, e até a distribuição desigual de bens
sejam superados ou desafiados. O igualitarismo mais radical dos marxistas e
anarquistas do século XIX, que buscavam a abolição da propriedade privada,
talvez não tenha mais um apelo amplo. Mas por trás da meta da ‘justiça social’
marcha uma outra mentalidade igualitária mais obstinada, que acredita que a
desigualdade em qualquer esfera – propriedade, lazer, privilégio legal,
prestígio social, oportunidades educacionais ou qualquer outra coisa que
possamos querer para nós e nossas crianças – é injusta até prova em contrário.
Em toda esfera em que a posição social dos indivíduos puder ser comparada, a
igualdade é a posição padrão.”
O
filósofo dá título de “O que é a
esquerda?” um espectro político tão variado – ou seja, onde não existe
a esquerda, mas “esquerdas”.
Esquerda não é uma receita de bolo ou uma cartilha de panfletagem como pensam
os mais lunáticos. A “defesa” de pautas minoritárias; identitárias e “libertárias”,
não é, evidentemente, “de esquerda” ou só dela. Bem como há liberais que
defendem o “liberalismo social” (a roupagem da “direita” menos reacionária). O que
se passa, efetivamente, é o politicismo quando se “vê” na política como corpo a
ser “mudada” através de “marcha [de] uma
outra mentalidade igualitária mais obstinada, que acredita que a desigualdade
em qualquer esfera [...] é injusta até prova em contrário”. E nisso, o
filósofo brasileiro José Chasin argumenta:
“O politicismo arma uma política avessa,
ou incapaz de levar em consideração os imperativos sociais e as determinantes
econômicas. Expulsa a economia da política ou, no mínimo, torna o processo
econômico meramente paralelo ou derivado do andamento político, sem nunca
considerá-los em seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais (...).
Trata-se, está claro, de um passo ideológico de raiz liberal.” (CHASIN. J; p. 124).
A problemática
do trecho “O igualitarismo mais radical
dos marxistas e anarquistas do século XIX, que buscavam a abolição da
propriedade privada, talvez não tenha mais um apelo amplo” é ratificada “em que a posição social dos indivíduos puder
ser comparada, a igualdade é a posição padrão.”.
Pois
bem. O autor, ao partir da premissa de uma esquerda unitária, isto é, única e unívoca, comete um grave erro: a
igualdade que se dizem tanto por aí (endossada pelos neopostivistas e
empiristas) é abstrata. Para falarmos em igualdade, é preciso, portanto,
superar a divisão social do trabalho, a exploração e a lógica mercadológica – e
o Estado burguês. Numa sociedade da indiferença, a individualidade é
homogeneizada. Só numa sociedade humanamente diferente é onde nossas diferenças
sociais aparecem. Mais além, o britânico segue
a argumentação sobre “justiça social”:
“Incorporado na prosa moderada de John Rawls, esse
pressuposto pode passar despercebido. Nos chamados mais agitados de Dworkin por
‘respeitar como um igual’, em oposição a ‘respeito igual’, ele pode fazer com
que as pessoas se perguntem para onde está indo o argumento. Mas o mais
importante ponto a se notar é que é um argumento que não permite que nada
fique em seu caminho. Nenhum costume, instituição, lei ou hierarquia
existentes; nenhuma tradição, distinção, regra ou devoção podem se sobrepor à
igualdade, se não puderem provar o seu valor com credenciais independentes.
Tudo o que não se conformar à meta igualitária deve ser extirpado e
reconstruído, e o mero fato de que algum costume ou instituição foi herdada e
aceita não é argumento a seu favor. Dessa forma, a ‘justiça social’ torna-se
uma exigência precariamente velada pela ‘limpeza completa’ da história que os
revolucionários sempre tentaram fazer.
As duas metas, de liberação e justiça social, não
são obviamente compatíveis, não mais que a liberdade e a igualdade defendidas
na Revolução Francesa. Se a liberação envolve a liberação do potencial
individual, como é que pararemos os ambiciosos, os enérgicos, os inteligentes,
os bonitos e os fortes de tomarem a dianteira, e o que devemos nos permitir
fazer para reprimi-los? Melhor não enfrentar essa pergunta impossível. Melhor
chamar as velhas mágoas em vez de examinar o que viria de expressá-las. Ao
declarar guerra às hierarquias e instituições tradicionais em nome desses dois
ideais, portanto, a esquerda consegue obscurecer o conflito entre ambos. Além
disso, a ‘justiça social’ é uma meta tão enormemente importante, tão
inquestionavelmente superior aos interesses estabelecidos que vão contra ela,
que toda ação feita em seu nome está purificada.”
Nesse
trecho podemos ter clara a noção idealista de “igualdade”. Marx, no texto “Crítica do Programa de Gotha” já fizera
esta crítica ao “igualitarismo”. Aliás, uma crítica que nem mesmo os marxistas –
em maioria – conhecem:
“Eliminação de toda desigualdade social e
política’, em vez de ‘superação de toda distinção de classe’, é também uma
expressão muito duvidosa. De um país para outro, de uma província para outra e
até mesmo de um lugar para outro, sempre existirá certa desigualdade de
condições de vida, que poderá ser reduzida a um mínimo, mas nunca completamente
eliminada. Os habitantes dos Alpes terão sempre condições de vida diferentes
das dos povos das planícies. A representação da sociedade socialista como o
reino da igualdade é uma representação unilateral francesa, baseada na velha “liberdade,
igualdade, fraternidade”, uma representação que teve sua razão de ser como fase
de desenvolvimento, em seu tempo e em seu lugar, mas que agora, como todas as
unilateralidades das primeiras escolas socialistas, deveria ser superada, uma
vez que serve apenas para provocar confusão nos cérebros e porque, além disso,
descobriram-se formas mais precisas de tratar a questão.” (MARX, K; 2012, p. 55).
Ainda
sim, o filósofo faz uma falsa acusação que “Dessa
forma, a ‘justiça social’ torna-se uma exigência precariamente velada pela
‘limpeza completa’ da história que os revolucionários sempre tentaram fazer.”.
Contudo,
a impassibilidade do argumento se torna inevitável porque, como dito, a questão
da “justiça social” é idealista e fica vedada ao plano do ideal, quando, na realidade,
a superação da propriedade privada também é sustentada não no aspecto moral ou
metafísico, mas nas relações humanas engendradas.
“Não apenas a vulgarização da economia
política foi um processo necessário de reação às primeiras revoluções
proletárias. A concepção da Sociologia enquanto ciência autônoma foi igualmente
uma reação conservadora às revoluções de 1848. A nova ciência surge com a
desintegração da escola ricardiana na Inglaterra, com Herbert Spencer, e do
socialismo utópico na França, com August Comte. A criação do “ponto de
vista sociológico” insere-se no trajeto de desintegração do pensamento
progressista burguês porque traz a possibilidade para os ideólogos burgueses de
se estudar os problemas sociais prescindindo de sua base econômica. A
totalidade da sociedade humana é assim parcelada em fatos sociais ou esferas isoladas.
Dessa maneira, com a nascente Sociologia, a categoria da totalidade fica
para trás na história do pensamento burguês.” (CARLI, R. Dois lados de uma mesma moeda: A dissolução
da economia clássica e o nascimento da Sociologia, 2009 –
Revista
Emancipação).
No decorrer do texto do
Roger, temos:
“É
importante tomar nota desse potencial purificador. Muitas pessoas na esquerda
são céticas quanto aos impulsos utópicos; ao mesmo tempo, tendo se aliado sob
uma bandeira moralizante, encontram-se inevitavelmente compelidas, inspiradas e
afinal governadas pelos membros mais fervorosos de seu secto. Pois a política
na esquerda é a política com um objetivo: o seu lugar na afiliação é
julgado por quão longe você está preparado a ir pela ‘justiça social’, seja lá
como é definida. O conservadorismo – ao menos aquele dentro da tradição
britânica – é a política do costume, da transigência e da indecisão resolvida.
Para o conservador, a afiliação política deve ser vista da mesma forma que a
amizade: não há um propósito primordial, mas mudanças cotidianas de acordo com
a lógica imprevisível de uma conversa. Extremistas dentro da afiliação
conservadora, portanto, são isolados, excêntricos e até perigosos. Longe de
serem parceiros profundamente zelosos num empreendimento em conjunto, são
separados por seu próprio senso de propósito daqueles que buscam liderar.”
Um trecho muito problemático,
para dizer o mínimo. Primeiro que é inevitável a ingenuidade ou
mal-intecionalidade do autor dizer “Para o conservador, a
afiliação política deve ser vista da mesma forma que a amizade: não há um
propósito primordial, mas mudanças cotidianas de acordo com a lógica
imprevisível de uma conversa. Extremistas dentro da afiliação conservadora,
portanto, são isolados, excêntricos e até perigosos.”.
Mais
uma vez, temos aqui, portanto, a visão fragmentária da sociedade. A “justiça
social” seria como o bastião das lutas diárias, ou seja, o politicismo
explícito e mal-ajambrado da argumentação.
“O politicismo é intrínseco à ordem do
capital: a ordem econômica é natural, a ordem política é o que resta para o
homem configurar, e esta é decisiva, molda a convivência e realiza a justiça. A
economia é [vista como] uma espécie de pano de fundo por si amorfo, ou melhor,
uma plataforma virtual com várias possibilidades, que será decidida pela
política.” (CHASIN, J; 1999, p. 38).
O
texto segue com um parágrafo deveras instigante. Comenta sobre uma questão da
historicidade marxiana:
“Marx
dispensou os vários socialismos de seu tempo como ‘utópicos’, distinguindo
‘socialismo utópico’ de seu próprio ‘socialismo científico’ que prometia
‘comunismo completo’ como seu resultado previsível. A ‘inevitabilidade
histórica’ dessa condição dispensou Marx da necessidade de descrevê-la. A
‘ciência’ consiste em ‘leis do movimento histórico’ delineadas n’O Capital e
em outros textos, segundo as quais o desenvolvimento econômico dá origem a
mudanças sucessivas na infraestrutura econômica da sociedade, permitindo a nós
a previsão de que a propriedade privada irá um dia desaparecer. Depois de um
período de tutela socialista – uma ‘ditadura do proletariado’ – o estado
‘murchará’, não haverá lei nem necessidade dela, e tudo será de propriedade
comum. Não haverá divisão do trabalho e cada pessoa viverá toda a gama de suas
necessidades e desejos, ‘caçando de manhã, pescando de tarde, cuidando do gado
à tardinha e se engajando em crítica literária depois do jantar’, como nos
dizem em A Ideologia Alemã.”
Marx
nunca disse que, inevitavelmente, a propriedade privada vai deixar de existir e
o que o Estado ‘definhará’ (aliás, desafio o autor a mostrar-nos isso), mas que
é uma tendência histórica que depende da ação política e da luta de classes. É
algo bem fácil de perceber se contextualizarmos a obra com o tempo histórico em
que foi concebida, visto que Marx e Engels viveram em um momento de gênese da
organização da classe trabalhadora, em uma efervescência revolucionária que
tomava toda a Europa. A questão é que Marx, diferente de outros teóricos do
socialismo, não via no movimento do capital a superação da propriedade privada
e do Estado, como se o capitalismo estivesse fadado a ruir, mas sim justamente
nessa mobilização revolucionária. Até porque se fosse “uma lei histórica do
movimento do capital” a ruína de seu sistema, para quê a revolução da classe
trabalhadora? Isto principalmente após a as Revoluções de 1848 e a Comuna de
Paris?
Para
responder o trecho, finalmente, de forma objetiva, o filósofo húngaro György Lukács,
diz claramente e de forma pontual:
“Talvez ainda mais relevante para a
teoria marxista da história seja a questão do desenvolvimento desigual, à qual
já fizemos referência. Nas notas fragmentárias com as quais conclui a
Introdução ao “Rascunho”, Marx se detém, sobretudo, na ‘relação desigual’
verificada no vínculo entre desenvolvimento econômico e objetivações sociais
importantes, como o direito e, sobretudo, a arte. Ele sublinha de imediato um
momento ontológico-metodológico decisivo, que deve estar no centro da argumentação
quando se enfrentam esses problemas: o conceito de progresso. Sua indicação é
que “em geral o conceito de progresso não seja concebido com a abstração
habitual”. Trata-se, em primeiro lugar, de romper com a abstratividade de um
conceito muito genérico de progresso; em última instância, esse conceito seria
a aplicação ao curso histórico da extrapolação lógico-gnosiológica de uma ‘ratio’
generalizada de modo absoluto. Quando discutimos sobre essência e fenômeno,
tivemos a oportunidade que, segundo Marx, o progresso econômico objetivo, ainda
que explicite as faculdades humanas em geral, pode provocar, de modo
concretamente necessário, a redução, a deformação etc. – ainda que temporárias –
dessas faculdades.” (LUKÁCS, G; 2012, p.
380).
O britânico segue sua linha argumentativa assim:
“Dizer
que isso é ‘científico’ em vez de utópico é, em retrospecto, pouco mais que uma
piada. A afirmação de Marx sobre caçar, pescar, ser fazendeiro por hobby e
crítica literária é a única tentativa que ele faz de descrever como seria a
vida sem propriedade privada – e se você pergunta quem lhe dá a arma ou a vara
de pescar, quem organiza a matilha de cães, quem mantém as matas e canais, quem
tira o leite e cuida dos bezerros, e quem publica crítica literária, tais perguntas
serão dispensadas como ‘irrelevantes’, e como questões a serem resolvidas por
um futuro que não é da sua conta. E quanto à questão de a imensa organização
necessária para essas atividades de lazer da classe alta universal ser
possível, numa condição em que não há lei, nem propriedade e portanto nenhuma
cadeia de comando, tais questões são triviais demais para serem notadas. Ou, em
vez disso, são sérias demais para serem consideradas, e portanto continuam
despercebidas. Pois é preciso apenas a menor avaliação crítica para notar que o
‘comunismo completo’ de Marx contém uma contradição: é um estado em que todos
os benefícios da ordem legal ainda estão presentes, mesmo embora não haja lei;
no qual todos os produtos da cooperação social ainda existem, embora ninguém
desfrute de direitos de propriedade que até aqui têm sido o único motivo para
produzi-los.”
Marx não é um coletivista e
nem um “anarquista” de final de festa. Como diz o professor Erik Gontijo:
“Ao contrário, toda a sua obra afirma a
necessidade de se emancipar os indivíduos das limitações impostas a
eles pelas classes sociais, mercado, divisão do trabalho, etc. Mas o
individualismo de Marx não se confunde com o burguês, que isola o indivíduo no
egoísmo (como algo próprio de sua “natureza”) e o contrapõe à sociedade. O
mesmo quanto ao humanismo: enquanto aquele que procede da mentalidade burguesa
é idealista, utópico, egoísta e reflete o fetichismo mercadológico dos “homens
de igual valor” e a tolerância do ecumenismo do dinheiro, o humanismo marxiano
afirma a emancipação dos indivíduos em uma sociedade autogerida.
Onde não cabe, evidentemente, nem
coletivismo reacionário, nem coletivismo estatal, burguês. Tomar o Estado é
necessário simplesmente porque detém poder material, que não ficará sobre o
muro no caso de uma revolução. É preciso rachar o Estado e voltar seu poder
contra aquilo para o qual ele existe como protetor. Senão, fiquem aí
sonhando com suas miseráveis comunidades hippies.” (GONTIJO, E; 2017).
O texto
prossegue de forma questionável sobre a História:
“A
natureza contraditória das utopias socialistas é uma explicação da violência
envolvida na tentativa de impô-las: é preciso força infinita para obrigar as
pessoas a fazerem o que é impossível. E a memória das utopias pesou sobre os
pensadores da Nova Esquerda dos anos 1960, e sobre os esquerdistas americanos
que adotaram a sua agenda. Não é mais possível se refugiar em especulações
etéreas que contentaram a Marx. Pensamentos reais são necessários para que
acreditemos que a história pende ou deve pender para uma direção socialista.
Daí a emergência dos historiadores socialistas, que diminuem sistematicamente
as atrocidades cometidas em nome do socialismo, ou botam a culpa pelos
desastres em forças ‘reacionárias’ que impediram o avanço do socialismo. Em vez
de tentar definir as metas da liberação e da igualdade, os pensadores da Nova
Esquerda criaram uma narrativa mitopoética do mundo moderno, na qual as guerras
e genocídios foram atribuídos àqueles que resistiram à ‘luta’ justiceira pela
justiça social. A história foi reescrita como um conflito entre o bem e o mal,
entre as forças da luz e as forças das trevas. E, por mais nuançada e enfeitada
que seja por seus muitos expoentes brilhantes, essa opinião maniqueísta
permanece entre nós, consagrada no currículo escolar e na mídia.”
Ora, “a emergência dos
historiadores socialistas, que diminuem sistematicamente as atrocidades
cometidas em nome do socialismo” sequer
o autor nos fornece um exemplo concreto. Uma afirmação arbitrária que nem
merece perder tempo. Inclusive, o historiador britânico Eric Hobsbawm comenta
logo no inicio de um texto intitulado “Renascendo
das Cinzas”. Encontra-se no livro organizado por Rubin Blackburn e lançado
no Brasil sob o título “Depois da queda:
o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo”.
“E esta é uma abordagem plausível, pois o termo, o
conceito, o programa, as realizações do socialismo e das políticas socialistas
não constituem simples dados objetivos como, por exemplo, a localização de
Londres no tio Tâmisa, geograficamente oposta aos Países Baixos, mas sim
construções mentais. São nomes, modelos, rótulos que usamos para procurar
compreender a situação na qual se encontra a humanidade desde a era das
revoluções no final do século XIX e no começo do XX e que damos a certas
tentativas de transformar e/ou melhorar a sociedade.” (HOBSBAWM, E; 1992).
Outro
filósofo húngano, István Mészáros, comenta acerca dessa história “reescrita como um conflito entre o
bem e o mal”:
“Todos nós temos consciência da
desintegração do pensamento e do conhecimento num número crescente de sistemas
à parte, cada qual mais ou menos autossuficiente, com sua própria linguagem, e
não assumindo a responsabilidade de saber ou preocupar-se com o que vai além de
suas fronteiras.” (MÉSZÁROS, I; 1981,
p. 269).
O texto termina de forma
rasa, sem embasamento e afirmações ruins e injustificadas:
“A
assimetria moral, que atribui à esquerda um monopólio da virtude moral e usa
‘direita’ sempre como um xingamento, acompanha uma assimetria lógica, a saber,
uma presunção de que o ônus da prova está sempre com o outro lado. Esse ônus
nem pode ser exonerado. Assim, nos anos 1970 e início dos 1980, quanto as
teorias de Marx estavam sendo recicladas como a verdadeira explicação dos
sofrimentos da humanidade sob regimes ‘capitalistas’, era raro encontrar
qualquer menção nos periódicos de esquerda às críticas feitas aos textos de
Marx no século anterior. A teoria de Marx sobre a história havia sido
questionada por Maitland, Weber e Sombart; sua teoria do valor-trabalho por
Böhm-Bawerk, Mises e muitos outros; suas teorias da falsa consciência,
alienação e luta de classes por uma gama de pensadores, de Mallock e Sombart a
Popper, Hayek e Aron. Nem todos esses críticos podiam ser postos à direita no
espectro político, nem todos eram hostis à ideia de ‘justiça social’. Ainda
assim, nenhum deles, até onde pude descobrir quando vim a escrever este livro,
recebeu qualquer resposta da Nova Esquerda que fosse mais que uma zombaria.”
A
primeira afirmativa é que a esquerda tem o “monopólio da virtude moral e usa ‘direita’
sempre como um xingamento.”. Vejamos o que Friedrich Engels nos fornece de argumento
no livro “Anti-During”:
“De
povo para povo, de época para época, as ideias de bem e de mal variaram de tal
modo que, muitas vezes, se revelaram contraditórias. Mas, objetar-se-á, o bem
não é o mal e o mal não é o bem, se se confunde o bem e o mal, desaparecem
todas as formas de moralidade e cada um pode agir como bem entender. Despojada
de toda a solenidade sibilina, é bem essa a opinião do sr. Duhring. Mas, apesar
de tudo, a coisa não é assim tão simples. Se o fosse, nunca se discutiria o bem
e o mal, todos saberiam o que é o bem e o que é o mal. Ora, que passa
atualmente nesse campo? Que moral nos pregam hoje? É, em primeiro lugar, a
moral feudal-cristã, herdada de séculos de fé e que se divide essencialmente em
moral católica protestante, sem prejuízo de subdivisões novas que vão da moral
jesuítica e da protestante ortodoxa até à moral latitudinária. Ao lado dela,
figura a moral burguesa moderna e, a par desta, a moral do futuro, a do
proletariado, de modo que, passado, presente e futuro fornecem, apenas em
relação aos países da Europa, três grandes grupos de teorias morais, simultânea
e concorrencialmente em vigor.” (ENGELS, F. Global, 1986).
A
segunda afirmativa é: “A teoria de Marx
sobre a história havia sido questionada por Maitland, Weber e Sombart”. Só que Max Weber, em seu tempo, possui uma
filiação distinta: o sociólogo alemão está dentro dos limites do chamado
neokantismo. Ele herda o seu resoluto relativismo subjetivo. Em confronto com o
determinismo incondicional de Durkheim, temos aqui um individualismo que foi caracterizado
por Mészáros como a “glorificação do relativismo e da arbitrariedade
subjetiva”. Weber articulou seu pensamento tendo em mente o socialismo como
principal adversário.
“Weber é claro em seu intento: reduzir
Marx à “modéstia da hipótese”. O materialismo histórico-dialético é
transformado em mera projeção ideal, em simples construto lógico. Sob a ótica
de Weber, Marx teria criado conceitos lógicos, não importa que o fundador do
materialismo moderno tenha dito que as categorias são formas de ser,
determinações da existência. A estratégia de transformar Marx em uma “sociologia”
é providencial para manipulá-lo, colocando-o em pé de igualdade com as outras
centenas de sociologias que são produzidas nos quatro cantos do mundo. Amesquinha-se
o método dialético-materialista para enquadrá-lo na investigação das
disciplinas parciais. É preciso rebaixar Marx a apenas mais uma entre tantas
explicações causais possíveis [...] Substitui-se o ponto de vista de classe
pelo ponto de vista subjetivo. Marx deixa de ser o teórico da classe
trabalhadora e transforma-se no teórico de seus próprios valores subjetivos, e
Weber oportunamente deixa de ser um pensador burguês, fazendo-se pensador de si
mesmo.” (CARLI, R; 2013, p. 90).
A terceira
é: “sua teoria do valor-trabalho por
Böhm-Bawerk, Mises e muitos outros; suas teorias da falsa consciência,
alienação e luta de classes por uma gama de pensadores”. Uma tonelada de
erros. A começar que “luta de classes”
não é uma opinião teórica ou formulação arbitrária apenas para satisfação de
ego. Vejamos,
por exemplo, se a “luta de classes” é ou não uma “invenção”, segundo Carl
Menger, um dos pioneiros do marginalismo:
“Com isso surge a necessidade de uma
previdência - que a sociedade assegure proteção legal aos indivíduos que
conseguiram apossar-se legitimamente da referida parcela de bens, contra os
ataques dos demais indivíduos. Chegamos assim à origem econômica de nossa ordem
jurídica atual: a proteção à propriedade, que constitui o fundamento da
propriedade.” (MENGER, Carl, 1983, p.
271).
“A
economia política clássica, enquanto ideologia da burguesia liberal em ascensão
(que desenvolveu os argumentos do direito natural com o fim de justificar a
propriedade móvel em detrimento da propriedade fundiária feudal), não podia
renunciar ao conceito de trabalho. Nos séculos imediatamente precedentes, a
consciência burguesa considerava a propriedade capitalista como
"conquistada" através do trabalho, à diferença da propriedade feudal,
fruto da mera apropriação. (...)
Com esta
dedução da origem da propriedade privada a partir do trabalho, a propriedade
burguesa aparece como legítima em face da propriedade feudal, contra a qual
está em luta. Mais ainda: segundo esta concepção, o burguês deve sua
propriedade a seu próprio trabalho e, por isto, pertence, em maior ou menos
medida, à classe dos trabalhadores. Saint-Simon não pode liberar-se ainda desta
ideia e incluiu os empresários industriais na classe trabalhadora. [...] Mas,
se o princípio do trabalho defende o interesse da burguesia contra a
propriedade feudal, ele passa a representar, na época do capitalismo maduro e
diante dos embates do proletariado, um perigo para a propriedade burguesa.
Nisto reside a principal razão da mudança de posição da teoria econômica
burguesa.” (KOFLER, Leo., 2010, p.229-231).
Considerações finais:
Por fim, não tenhamos
problemas para aceitar críticas a Marx e o marxismo em geral, eu mesmo faço várias
(e marxistas sempre fazem), não apenas pela amplitude da obra cuja é passível de
assinalações, bem como a um amplo leque de marxistas; porém, ao menos os
críticos devem ter a decência de consultar fontes que dê credibilidade teórica
e rigor metodológico.
Muitos críticos insistem em
dizer que Marx está morto e intelectualmente falido (vide Mario Bunge), mas
todo mundo acha pelos em casca de ovo para poder criticá-lo. Muito se vê a
busca por superação das condições sociais atuais, mas poucos têm a seriedade no
estudo e na prática.
Notas:
Referências bibliográficas:
BLACKBURN, R. Depois da queda: o fracasso do
comunismo e o futuro do socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
CARLI,
Ranieri. György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 90.
CHASIN,
José. “Hasta Cuando”. In: A miséria brasileira, op. cit., p. 124.
CHASIN, J.
Rota e prospectiva de um projeto marxista. In: Ensaios Ad hominem I, Santo
André, 1999, p. 3).
COUTINHO, C.
N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular,
2010, p. 99-107.
ENGELS, F.
Anti-Duhring. In: Sobre literatura e arte. 3ª ed. São Paulo: Global, 1986.
KOFLER, Leo.
História e dialética: estudos sobre a metodologia da dialética marxista. Trad.
José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010, p.229-231.
LUKÁCS, G.
Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 380-381.
MARX, K. Crítica
ao Programa de Gotha. São Paulo. Boitempo. 2012, p. 55.
MENGER,
Carl. Princípios de economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 271.
MÉSZÁROS,
I.Marx: a teoria da alienação. São Paulo. 1981, p. 269.