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sábado, 6 de junho de 2020

Vida, afetos e a arte: breves comentários filosóficos

Quadro de Rousseau
quadro de Rousseau

Em seu diálogo “A Vida Feliz”, Santo Agostinho fala sobre o que tem para à razão ao filosofar é, em suma, a busca pela felicidade (e essa é algo imanente ao homem). Sendo assim, a felicidade faz parte de sua natureza dos seres humanos, mas nem por isso advém do “nada”.

Para ser verdadeiramente feliz, afirma Agostinho, não se pode temer as vicissitudes de uma infelicidade. A vida que se norteia pela posse de bens frágeis, perecíveis. Porém, não pode ser feliz aquele que se tem medo de perder a felicidade e, pelo fato de as coisas relativas serem marcadas pela insaciabilidade, pela incompletude, a posse de bens frágeis nunca será satisfatória: sempre há de se desejar mais, algo além do que se possui.

Aquilo que poderíamos chamar de “reificação”, isto é, um enrijecimento brutal da mercantilização dos afetos, nesse caso, perpassa o indivíduo em suas relações recíprocas. Isso acontece pelo processo cada vez mais crescente de divisão social do trabalho, pela “impessoalidade” afetiva e, também, pelo ato egóico do individualismo.

Tais elementos, que revolvem, segundo Schiller (nos idos do séc. XVIII), no desenvolvimento como indivíduo-fragmento: ou seja, segundo o autor, “de tal modo que se tem de questionar os indivíduos um por um para reconstituir a totalidade da espécie” (SCHILLER, 1994, p. 39).

Mesmo que a arte e a poesia tornam-se uma forma de conhecimento imprescindível em todas as épocas, ela própria, na vida humana, não tem um domínio autárquico e “livre”, sendo “usada” de modo utilitarista: “A utilidade é o grande ídolo do tempo; quer ser servida por todas as forças e cultuada por todos os talentos. Nesta balança grosseira, o mérito espiritual da arte nada pesa, e ela, roubada de todo estímulo, desaparece do ruidoso mercado do século” (SCHILLER, 2002, p. 22).

O filósofo Rousseau, todavia, em meados do século XVIII, com a precisão de um vidente, conseguiu diferenciar o que ele chamou de “amor-próprio” do que alcunhou de “amor-de-si”. O primeiro, era o responsável por engendrar o solipsismo e o egoísmo que o contrato social burguês exaltava e necessitava a derrocar tal cambaleante sociedade feudal. Era o Amor-Próprio, enquanto condição ideológica e subjetiva.

O Amor-de-si, pelo contrário, era o sentimento de altruísmo, de fraternidade e de equidade, por sua vez, em que o ser social nutre por si a fim de se autopreservação, pelos outros seres sociais pelos quais nutrimos laços afetivos, de forma eudaimônica e feliz. Esse é o amor essencial, ainda que, em dadas relações sociais específicas, é por vezes aniquilado e trucidado pelo contrato social artificial e pela mercadoria; pelo nascente contrato social burguês e por sua Sociedade-Civil.

Em seu lugar, vigorou-se o “amor próprio”: a desconfiança, a competição, a cobiça e o individualismo e a autoafirmação pungente de uma falsa felicidade, os quais mutilam, deformam, degeneram, e torna o ser humano e a tudo, venais. Rousseau de sua maneira, explicou o que vemos hoje: uma exortação e espetacularização da aparência reificada, enquanto o ser venalizado (imbuído de valor de troca, mercadológico).

O sujeito é autoproduzido como objeto, tem uma personalidade mesquinha, egoísta, alienada, que refletem imediatamente o tipo existente de sociedade triunfante: a personalidade solipsista e aburguesada.

Nas palavras de Rousseau:

“A fonte de nossas paixões, a origem e o princípio de todas as outras, a única que nasce com o homem e não o deixa nunca durante sua vida, é o amor de si, a paixão primitiva inata, anterior a qualquer outra [...]. É sempre bom e conforme a ordem [...]. É preciso portanto que nos amemos para nos conservarmos [...]. O amor a si mesmo, que só a nós diz respeito, satisfaz-se quando nossas necessidades estão satisfeitas; mas o amor-próprio que se compara, nunca está satisfeito e não o poderia estar, porque tal sentimento, em nos preferindo aos outros, exige também que os outros nos prefiram a eles; o que é impossível. Eis como as paixões ternas e afetuosas nascem do amor a si mesmo, e como as paixões odientas e irascíveis nascem do amor-próprio” (1995, p. 235).

Para escrever o romance Júlia, Rousseau, entretanto, diz nas Confissões que foi preciso “no meio de tantos preconceitos e paixões fingidas, saber analisar perfeitamente o coração humano para ali distinguir os verdadeiros sentimentos humanos” (2011, p. 515).

Portanto, para cultivarmos o “amor-de-si” (esse que, ao valorizar os laços afetivos, que nos cercam), requer que possibilita-nos criar outros novos e enriquecer os existentes. A formação humanitária é, mesmo no caos, a consignação social do novo. Essa passagem de Rousseau é bastante explicativa: a origem das nossas paixões e o princípio de todas as outras, a única que nasce com o homem, e que o acompanha durante toda a sua vida, é o amor por si e para-si (em comunhão).

Por sua vez, a proposta de Aristóteles, pois, parece colocar junto razão e emoção. As páthe estão presentes na constituição do sujeito moral. Nele têm papel significativo tanto para o caráter quanto para o início das ações. Assim, a razão prática atua no interior do sujeito moral, nas suas condutas práticas cotidianas, afetivas e vitais. Pode conduzi-lo melhor ao seu objetivo, mas também frear ou redirecionar seus movimentos, tornando o sujeito moral um agente moderado em suas emoções. Quando essa “mediania” – ou meio termo – é-lhe afastada, isso prova que, para o filósofo grego, há um juízo no interior das emoções.

Como argumenta Glauber Athaíde no comentário sobre Sêneca: “Aquele que pensa apenas em si mesmo e se cerca de amigos por causa disso, pensa erroneamente e terminará assim como começou, isso é, sem amigos. [...] Quem é tomado como amigo unicamente por causa da utilidade, será considerado amigo apenas na medida em que puder ser utilizado. Por isso podemos ver que os felizes são cercados de amigos, mas ao lado dos desgraçados, reina a solidão”.

O filósofo romano Sêneca, então adverte, em seu breve texto “Sobre a Brevidade da vida”, que vivamos o presente. Em outras palavras, ele diz que o passado não tem autonomia no ato presente, pois vislumbramos sempre o futuro (ainda não existente); este – o futuro – é incerto, mas uma possibilidade a ser criada. Nossa felicidade consiste na nossa harmonia entre o ser individual com o ser genérico – humano.

É preciso uma autossuficiência do amor e dos afetos não no sentido egoísta e do “amor-próprio”. O “amor-de-si”, por sua vez, como coloca Rousseau, aquele que engendra um autocuidado, não enganador, mas sincero: subverte o seu par vilipendiado para a condição de mutualidade e não dependência emotiva. Seja na arte ou filosofia, o reforço humanitário nunca deixamos de ser, ao final, seres sociais.

Precisamos cuidar de nós, enquanto seres humanos. Embora o “amor-próprio” seja egoísta, pseudo-suficiente, ele pode ser “educado”, mas não ao passo de substituir o “amor de si”. Nossa vida enquanto humanos é deveras limitada, embora possamos nutrir afeições outrora genuínas, o “amor próprio” sempre representará fragmentações de um sujeito igualmente fragmentado e iludido.

Se não “temos a morte à vista”, afirma Sêneca, “todos estendem esperanças ao longe [...] mesmo a tomar disposições com relação as coisas que estão além de suas vidas”. O autor refere-se que nas dádivas, safanões, e nas piras funerárias, estamos vinculados à “condição de todos os ocupados seja miserável, contudo a mais miserável é a daqueles que nem se molestam com suas próprias ocupações, que regulam seu sono pelo alheio, que caminham segundo as passadas de outro, e que estão sob ordens, mesmo nas mais livres das coisas: amar e odiar”.

Escrevo tudo isso para mostrar, ao longo da história da filosofia e do pensamento humano, que a felicidade, o amor, etc foi concedida a priori como depositária no ‘outro’, mas parte essencialmente de nós; na inter-relação com outro. A felicidade e o amor nunca é, pois, o relegar de nós para o “outro”, mas nossa afirmação enquanto ente-espécie verdadeiramente. Portanto, o “nós” é sempre o em-si no “outro”; compreender e conhecer a “nós”, revolve no reconhecer-se no “outro”.

Para sair dessa espetacularização da farsa reificada, as pessoas tendem a reafirmarem: o “amor próprio” (egoísta) em detrimento do “amor de si” (companheiro) como fuga alienada de um mito de Sísifo.

E é somente conhecendo bem a nós, podemos, assim, desvelar a sociedade existente (e seus dilemas). Para finalizar com Marx:

“O indivíduo é o ser social. Sua manifestação de vida [...] é, por isso, uma externação e confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são diversas, por mais que também [...] o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais universal da vida genérica, ou quanto mais a vida genérica seja uma vida individual mais particular ou universal” (MARX, 2010, p. 107).

Referências (algumas):

AGOSTINHO. A vida feliz. Col. Patrística, 11. São Paulo: Paulus, 1998.

ATHAIDE, Glauber. Precisamos de amigos para ser feliz?. Disponível em: https://www.filosofiaepsicanalise.org/2020/04/precisamos-de-amigos-para-viver-feliz.html. Acessado: 06 de junho de 2020.

ARISTÓELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornhein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução, apresentação e notas Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a religião e a moral. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.

SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem (cartas). Tradução de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. Iluminuras: São Paulo, 2002.

SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. L&PM Pocket. (Versão on-line Lê Livros).