A teoria francesa pós-marxista contribuiu
com a CIA em desacreditar o anti-imperialismo e o anticapitalismo. Por Gabriel Rockhill
Traduzido
por Pablo Polese. O original encontra-se aqui.
O link original se encontra no site Passa Palavra: http://passapalavra.info/2017/03/110892
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Presume-se, com frequência, que os intelectuais têm pouco ou
nenhum poder político. Empoleirados em uma privilegiada torre de marfim,
desconectados do mundo real, envolvidos em debates acadêmicos sem sentido sobre
minúcias especializadas ou flutuando nas abstrusas nuvens da teoria dos grandes
pensadores, os intelectuais são frequentemente retratados não apenas como
isolados da realidade política como incapazes de ter qualquer impacto
significativo nela. A Agência Central de Inteligência pensa o contrário.
De
fato, a agência responsável pelos golpes de Estado, os assassinatos
direcionados e a manipulação clandestina de governos estrangeiros não só
acredita no poder da teoria, como também dedicou recursos significativos para
ter um grupo de agentes secretos dedicados a se debruçar sobre o que alguns
consideram ser a mais recôndita e intrincada teoria já produzida. Em um
intrigante trabalho de pesquisa escrito em 1985 (ver aqui), e
recentemente publicado com pequenas alterações através do Freedom of Information Act,
a CIA revela que seus agentes andaram estudando a complexa teoria francesa de
tendências internacionais, afiliada aos nomes de Michel Foucault, Jacques Lacan
e Roland Barthes.
Raymond Aron em férias com esposa e membros da CIA |
A imagem de espiões americanos se reunindo em cafés parisienses
para estudar assiduamente e comparar notas acerca dos sumos sacerdotes da intelligentsia francesa pode chocar quem presuma que tal
grupo de intelectuais seja luminar cuja sofisticação ultramundana jamais
poderia ser capturada por uma batida policial tão vulgar, ou quem os assuma
como sendo, ao contrário, charlatães de retórica incompreensível com pouco ou
nenhum impacto sobre o mundo real. No entanto, não deve surpreender aqueles
familiarizados com o longo e contínuo investimento da CIA em uma guerra
cultural global, incluindo o apoio às suas formas mais vanguardistas, bem
documentados por pesquisadores como Frances Stonor Saunders, Giles Scott-Smith,
Hugh Wilford (fiz a minha própria contribuição em Radical History & the
Politics of Art, ver aqui).
Thomas
W. Braden, ex-supervisor de atividades culturais da CIA, explicou o poder da
ofensiva cultural da Agência em um franco relato publicado em 1967 : “Lembro-me da enorme alegria que
tive quando a Boston Symphony Orchestra [que foi apoiada pela CIA]
ganhou mais elogios para os EUA em Paris do que John Foster Dulles ou Dwight D.
Eisenhower poderia ter logrado com uma centena de discursos”. Esta não era de
modo algum uma operação pequena ou principiante. De fato, como Wilford
argumentou com razão, o Congresso para a Liberdade Cultural (CCF), que foi
sediado em Paris e mais tarde descoberto como uma organização da CIA durante a
Guerra Fria, foi um dos mais importantes patrocinadores da história mundial,
com uma gama incrível de atividades artísticas e intelectuais. Contava com
escritórios em 35 países, publicou dezenas de revistas de prestígio, participou
da indústria do livro, organizou conferências internacionais de alto nível e
exposições de arte, coordenou apresentações e concertos e contribuiu com amplo financiamento
para vários prêmios culturais e bolsas de estudo em organizações como a
Farfield Foundation.
A
agência de inteligência entende a cultura e a teoria como armas cruciais no
arsenal global que se desdobra a fim de perpetuar os interesses dos EUA em todo
o mundo. O recente trabalho de pesquisa de 1985, intitulado “França: Defecção dos
intelectuais de esquerda”, examina – sem dúvida para manipular – a
intelectualidade francesa e seu papel fundamental na formação das tendências
que geram políticas. Sugerindo que houve um relativo equilíbrio ideológico
entre a esquerda e a direita na história do mundo intelectual francês, o
relatório destaca o monopólio da esquerda na imediata era pós-guerra – ao que,
sabemos, a Agência se opôs com raiva – devido ao papel chave dos comunistas em
resistir ao fascismo e finalmente ganhar a guerra contra ele. Embora a direita
tivesse sido massivamente desacreditada por causa de sua contribuição direta
com os campos de extermínio nazistas, bem como sua agenda xenófoba,
anti-igualitária e fascista (de acordo com a própria descrição da CIA), os
agentes secretos sem nome que elaboraram o esboço do estudo nitidamente se
deleitavam com o retorno da direita desde aproximadamente o início dos anos
1970.
Mais
especificamente, os guerreiros culturais secretos aplaudem o que veem como um
duplo movimento que tem contribuído para o deslocamento do foco crítico da intelligentsia para longe dos EUA, rumo à URSS. À
esquerda, houve um gradual descontentamento intelectual com o stalinismo e o
marxismo, uma retirada progressiva dos intelectuais radicais do debate público
e um afastamento teórico do socialismo e do partido socialista. Mais à direita,
os oportunistas ideológicos referidos como os “novos filósofos” e os
intelectuais da “nova direita” lançaram uma campanha midiática de alto nível
voltada à difamação do marxismo.
Enquanto
outros tentáculos da organização mundial de espionagem estavam envolvidos em
derrubar líderes eleitos democraticamente, fornecendo inteligência e
financiamento para ditadores fascistas e apoiando esquadrões da morte de
direita, o esquadrão central de intelligentsia de
Paris estava coletando dados sobre como a deriva teórica do mundo à direita
beneficiava diretamente a política externa dos EUA. Os intelectuais de esquerda
do imediato pós-guerra haviam criticado abertamente o imperialismo
norte-americano. A influência midiática de Jean-Paul Sartre como um crítico
marxista franco e seu papel notável – como fundador da Libération – em desmascarar a estação da CIA em
Paris e dezenas de agentes secretos, foi monitorado de perto pela Agência e considerado um problema
sério.
Edward Said, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre |
Em contraste, a atmosfera antissoviética e antimarxista da
emergente era neoliberal desviou o escrutínio público e forneceu excelente
cobertura para as guerras sujas da CIA, tornando “muito difícil para qualquer
um mobilizar oposição significativa entre as elites intelectuais às políticas
dos EUA na América Central, por exemplo,”. Greg Grandin, um dos principais
historiadores da América Latina, resumiu perfeitamente esta situação em The Last Colonial Massacre (ver aqui):
“Além de fazer intervenções visivelmente desastrosas e mortíferas na Guatemala
em 1954, na República Dominicana em 1965, no Chile em 1973, em El Salvador e
Nicarágua durante a década de 1980, os Estados Unidos emprestaram apoio
financeiro, material e moral firme e constante aos Estados terroristas
assassinos e contra-insurgentes. […] Mas a enormidade dos crimes de Stálin
garante que tais histórias sórdidas, por mais convincentes, completas ou
condenatórias, não perturbem a fundação de uma cosmovisão comprometida com o
papel exemplar dos Estados Unidos na defesa do que hoje conhecemos como
democracia.”
É
neste contexto que os mandarins mascarados da CIA elogiam e apoiam a crítica
implacável que uma nova geração de pensadores antimarxistas como Bernard-Henri
Levy, André Glucksmann e Jean-François Revel desencadeou sobre “a última camarilha de comunistas ilustrados”
(composta, segundo os agentes anônimos, por Sartre, Barthes, Lacan e Louis
Althusser). Dadas as tendências de esquerda destes anti-marxistas em sua
juventude, eles fornecem o modelo perfeito para construir narrativas enganosas
que amalgamam o suposto crescimento político pessoal com a marcha progressiva
do tempo, como se tanto a vida individual como a história fossem simplesmente
uma questão de “crescer” e reconhecer que a profunda transformação social
igualitária é uma coisa do passado pessoal e histórico. Este derrotismo
paternalista e onisciente não só serve para desacreditar os novos movimentos,
especialmente os impulsionados pela juventude, mas também distorce os sucessos
relativos da repressão contra-revolucionária como o progresso natural da
história.
Mesmo
os teóricos que não eram tão opostos ao marxismo quanto esses intelectuais
reacionários deram uma contribuição significativa para um ambiente de desilusão
com o igualitarismo transformador, o desapego à mobilização social e a
“investigação crítica” desprovida de política radical. Tal fato é extremamente
importante para entender a estratégia geral da CIA em suas amplas e profundas
tentativas de desmantelar a esquerda cultural na Europa e em outros lugares.
Reconhecendo que era improvável que pudesse aboli-la inteiramente, a
organização de espionagem mais poderosa do mundo procurou afastar a cultura
esquerdista de uma política anticapitalista e transformadora resoluta para
posições reformistas de centro-esquerda que são menos abertamente críticas às
políticas externa e doméstica dos EUA. Na verdade, como Saunders demonstrou em
detalhes, a Agência seguiu o Congresso liderado por McCarthy no período
pós-guerra a fim de apoiar diretamente e promover projetos de esquerda que
orientaram os produtores culturais e os consumidores para longe da esquerda
resolutamente igualitária. Ao rachar e desacreditar esta última, também
aspirava a fragmentar a esquerda em geral, deixando o restante da
centro-esquerda com apenas um mínimo poder e apoio público (bem como sendo
potencialmente desacreditada por sua cumplicidade com a política da direita de
busca pelo poder, questão que continua a atormentar os partidos contemporâneos
institucionalizados à esquerda).
É
nesta luz que devemos compreender a preferência da Agência de inteligência
pelas narrativas de conversão e sua profunda apreciação pelos “marxistas
reformados”, um leitmotiv que
atravessa o trabalho de pesquisa sobre a teoria francesa. “Ainda mais eficaz em
minar o marxismo”, escrevem, “foram aqueles intelectuais que se propuseram a
aplicar a teoria marxista nas ciências sociais, mas terminaram por repensar e
rejeitar toda a tradição”. Eles citam, em particular, a profunda contribuição
dada pela Escola dos Annales, na historiografia, e pelo estruturalismo –
particularmente Claude Lévi-Strauss e Foucault – à “demolição crítica da
influência marxista nas ciências sociais”. Foucault, que é referido como “o pensador
mais profundo e influente da França”, é especificamente aplaudido por seu
elogio aos intelectuais da Nova Direita por lembrarem aos filósofos que
“consequências sangrentas” “fluíram da teoria social racionalista do Iluminismo
do século XVIII e da era revolucionária”. Embora seja um erro creditar o
colapso de qualquer posição política ou efeitos políticos como resultado de uma
única posição, o esquerdismo anti-revolucionário de Foucault e sua perpetuação
da chantagem do Gulag – isto é, a afirmação de que os movimentos radicais
expansivos que visam a profunda transformação social e cultural apenas
ressuscitam as mais perigosas tradições – estão perfeitamente em sintonia com
as estratégias globais de guerra psicológica da agência de espionagem.
A leitura da teoria francesa pela CIA deveria nos dar uma pausa,
então, para reconsiderar o verniz radical-chic que acompanhou boa parte de sua
recepção anglófona. De acordo com uma concepção etapista da história
progressista (que normalmente é cega à sua teleologia implícita), o trabalho de
figuras como Foucault, Derrida e outros teóricos franceses de ponta é muitas
vezes identificado intuitivamente como uma forma de crítica profunda e
sofisticada que presumivelmente ultrapassa qualquer coisa encontrada nas tradições
socialista, marxista ou anarquista. É certamente verdade, e merece ênfase, o
fato de que a recepção anglófona da teoria francesa, como apontou John
McCumber, tem importantes implicações políticas como um pólo de resistência à
falsa neutralidade política, aos tecnicismos seguros da lógica e da linguagem,
ou à ideologia do conformismo operante nas tradições da filosofia anglo-americanas
apoiadas por McCarthy. No entanto, as práticas teóricas de figuras que deram as
costas ao que Cornelius Castoriadis chamou de tradição de crítica radical – que
significa resistência anticapitalista e anti-imperialista – certamente
contribuíram para a deriva ideológica da política transformadora. Segundo a
própria Agência de espionagem, a teoria francesa pós-marxista contribuiu
diretamente para o programa cultural da CIA de persuadir a esquerda para a
direita, ao mesmo tempo em que desacreditava o anti-imperialismo e o
anticapitalismo, criando assim um ambiente intelectual no qual seus projetos
imperiais poderiam ser perseguidos sem serem incomodados pelo exame crítico
sério da intelligentsia.
Como
sabemos da pesquisa sobre o programa de guerra psicológica da CIA, a
organização não só acompanhou e procurou coagir os indivíduos, mas sempre quis
aprender e transformar instituições de produção e distribuição cultural. Na
verdade, seu estudo sobre a teoria francesa aponta para o papel estrutural que
as universidades, as editoras e os meios de comunicação social desempenham na
formação e consolidação de um ethos político
coletivo. Em descrições que, como o resto do documento, deve nos convidar a
pensar criticamente sobre a atual situação acadêmica no mundo anglófono e para
além dele, os autores do relatório colocam em primeiro plano as maneiras pelas
quais a precarização do trabalho acadêmico contribui para a demolição do
esquerdismo. Se os esquerdistas mais convictos não conseguirem os meios
materiais necessários para realizar seu trabalho, ou se somos mais ou menos
sutilmente obrigados a nos conformar para encontrar emprego, publicar nossos
escritos ou ter audiência, estão dadas as condições estruturais para uma
comunidade de esquerda enfraquecida. A profissionalização do ensino superior é
outra ferramenta utilizada para este fim, uma vez que visa transformar as
pessoas em engrenagens tecnocientíficas no aparelho capitalista em vez de
cidadãos autônomos com ferramentas confiáveis para a crítica social. Os
mandarins da teoria da CIA louvam assim os esforços por parte do governo
francês para “empurrar estudantes para os negócios e cursos técnicos”.
Igualmente apontam as contribuições feitas por editores de destaque como
Grasset, a grande mídia e o sucesso da cultura americana na promoção de sua
plataforma pós-socialista e anti-igualitária.
Que
lição pode extrair deste relatório, particularmente no ambiente político atual,
com seu contínuo ataque à intelligentsia crítica?
Em primeiro lugar, ele deve ser um lembrete convincente de que, se alguns
presumem que os intelectuais são impotentes, e que nossas orientações políticas
não importam, a organização que tem sido um dos mais poderosos corretores de
poder na política mundial contemporânea pensa diferente. A Agência Central de
Inteligência, como o seu nome ironicamente sugere, acredita no poder da
inteligência e da teoria, e devemos levar tal fato muito a sério. Supondo
falsamente que o trabalho intelectual tem pouco ou nenhum impacto no “mundo
real”, não apenas deturpamos as implicações práticas do trabalho teórico, mas
corremos o risco de fechar os olhos perigosamente para os projetos políticos
dos quais podemos facilmente nos tornar, sem saber, embaixadores culturais.
Embora seja certo que o Estado-nação e o aparato cultural francês constituem
uma plataforma pública muito mais significativa para os intelectuais do que a
que se encontra em muitos outros países, a preocupação da CIA em mapear e
manipular a produção teórica e cultural poderia servir como um despertador para
todos nós.
Gilles Deleuze, Jean-Paul Sartre e Michel Focault |
Segundo, os agentes do poder de hoje têm interesse em cultivar
uma intelectualidade cuja visão crítica tem sido embotada ou destruída por
instituições de fomento fundadas em interesses empresariais e tecnocientíficos,
equiparando política de esquerda e anticiência, correlacionando a ciência com
uma supostamente falsa neutralidade política, promovendo meios de comunicação
que saturam as ondas sonoras com brigas conformistas, capturando fortes
esquerdistas fora das principais instituições acadêmicas e da mídia, e
desacreditando qualquer reivindicação de transformação igualitária e ecológica
radical. Idealmente, procuram nutrir uma cultura intelectual que, se está à
esquerda, é neutralizada, imobilizada, tornada apática e contente com a visão
derrotista, ou com o criticismo passivo da esquerda radicalmente mobilizada.
Esta é uma das razões pelas quais podemos considerar a oposição intelectual ao
esquerdismo radical, que prepondera na academia norte-americana, como uma
posição política perigosa: ela não é diretamente cúmplice da agenda
imperialista da CIA em todo o mundo?
Terceiro,
para combater este assalto institucional a uma resoluta cultura de esquerda, é
imperativo resistir à precarização e à profissionalização da educação. É
igualmente importante criar esferas públicas de debate verdadeiramente crítico,
proporcionando uma plataforma mais ampla para aqueles que reconhecem que outro
mundo não é apenas possível, mas necessário. Também precisamos nos unir para
contribuir para (ou continuar a) desenvolver meios alternativos, diferentes
modelos de educação, contra-instituições e coletivos radicais. É vital promover
precisamente o que os combatentes culturais secretos querem destruir: uma
cultura de esquerdismo radical com um amplo quadro institucional, amplo apoio pública
e influência midiática prevalecente e poder expansivo de mobilização.
Finalmente,
os intelectuais do mundo devem unir-se ao reconhecer nosso poder e aproveitá-lo
para fazer tudo o que pudermos para desenvolver uma crítica sistêmica e radical
tão igualitária e ecológica como anticapitalista e anti-imperialista. As
posições que se defendem na sala de aula ou publicamente são importantes para
definir os termos do debate e traçar o campo da possibilidade política. Em
oposição direta à estratégia cultural da agência espiã de fragmentar e
polarizar, pela qual tem buscado separar e isolar a esquerda anti-imperialista
e anticapitalista, que ao mesmo tempo se opõe a posições reformistas, devemos
nos federar e nos mobilizar, reconhecendo a importância de trabalharmos juntos
– em toda a esquerda, como Keeanga-Yamahtta Taylor nos lembrou recentemente – para o cultivo de uma intelligentsia verdadeiramente crítica. Ao invés de
proclamar ou lamentar a impotência dos intelectuais, devemos aproveitar a
capacidade de falar a verdade ao poder trabalhando em conjunto e mobilizando
nossa capacidade de criar coletivamente as instituições necessárias para um
mundo aberto ao esquerdismo cultural. Pois é somente em tal mundo, e nas caixas
de ressonância que a inteligência crítica produz que as verdades faladas podem
realmente ser ouvidas e assim mudar as próprias estruturas de poder.
Nota: agradeço
ao site e ao tradutor por ter nos presenteado com este belíssimo artigo
esclarecedor. *
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