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quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Francisco de Goya e Walter Benjamin: história, pessimismo e realismo


 
Os fuzilamentos de 03 de Maio (1808)




Francisco de Goya foi um famoso pintor espanhol da escola do Realismo do séc. XIX. Nasceu na cidade de Zaragoza, Espanha, em 1746. Faleceu em Bordéus, França, em 1828. Até hoje, ele é considerado amplamente um dos maiores mestres da pintura espanhola.

Em suas belas pinturas, Goya retratou mitologia, religião, guerras, irracionalidade, apocalipse, deuses, chacais, demônios e feiticeiras provindas dos confins de sua mente criativa e inquieta. Nas obras, seguia um estilo tragicômico como sugerido pela lírica de Dante, em que unia o cômico e o trágico em fusão melodramática.

Sua técnica nesse caso era bem caracterizada como satírica dos costumes, vícios sociais, ridícula aos mitos, superstições populares sobre bruxaria e misticismo. Além disso, outro lado dos trabalhos de Goya baseava-se no horror e na crueldade, como em imagens de violência e guerras, nas quais ele aplica minúcia e sutileza em traços negros, cinzentos e frios.

A arte de Francisco Goya pode nos remeter a uma análise filosófica que passa por um autor alemão que fora assassinado durante o período da Segunda Guerra Mundial: Walter Benjamin. Após uma leitura das teses dos anos 40 do filósofo alemão Walter Benjamin, pois, começamos a nos intrigar sobre o tempo, a história e seus desdobramentos, como eles podem ser percebidos.

Vemos, por exemplo, que na música de Cazuza – O Tempo Não Para, é uma letra resignada, aceita a história como realmente nos é contada, uma mera repetição de erros; “Eu vejo o futuro repetir o passado/ Eu vejo um museu de grandes novidades”. Como diria o sociólogo brasileiro Michael Löwy em seu livro Walter Benjamin: aviso de incêndio – Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, o tempo progressivo, de acúmulo, é um tempo vazio e homogêneo, ao contrário deve um revolucionário ou historiador materialista capturar um tempo-de-agora, encharcado de acontecimentos passados.

Assim, a qualquer momento pode abrir um lapso no tempo e reivindicar o passado. Um passado esquecido, um passado de derrotas da classe oprimida, o passado de Spartacus, Comuna de Paris, Liga Espartaquista, e por que não a queda do muro de Berlim (o fim do chamado “perigo vermelho”)? Nesse contexto, podemos relacionar a obra de arte com a literatura de Benjamin à luz da análise de Michael Lowy no seguinte sentido: os fuzilamentos de 03 de Maio, ocorrido em 1808 (ano da obra de Goya), após Napoleão invadir a Espanha e a casa real espanhola. A revolta estoura a 3 de Maio de 1808, quando uma parte do povo de Madrid tenta evitar a saída, ordenada pelos franceses. A situação escalou e as tropas francesas atiraram contra os madrilenos sublevados.

Por vezes o leitor deparará com termos pouco aceitos no marxismo nos escritos de Lowy, por exemplo, totalitarismo, ou uma critica moral e não política para com o Pacto Molotov-Ribbentrop (Pacto de não agressão no início dos anos 30) entre a U.R.S.S e a Alemanha Nazista.

Ao todo Walter Benjamin escreveu 18 teses e 02 apêndices sobre o conceito de história, mas não quis publicá-las, porque o filósofo tinha receio de que pudessem ter interpretações errôneas. Porém após sua trágica morte em Portbou, na Espanha, tentando sair da Alemanha nazista em encontro dos EUA, a obra foi publicada postumamente. O autor das teses comete suicídio para não cair nas mãos da Gestapo.

Löwy nos passa com solidez o pensamento de Benjamin, a sua preocupação com o progresso desenfreado, o historiador e ou revolucionário que abandona a cisão com o tempo, e sua originalidade de nos fornecer uma junção do marxismo com a religião (culminando, posteriormente, na Teologia da Libertação).

Analisando tese a tese, Löwy destrincha de forma clara e erudita as ideias, polêmicas, confrontos e ideais por detrás das proposições de Benjamin. Com uma preocupação inclusive de ilustrá-las por meio de exemplos da realidade latino-americana, como a Teologia da Libertação e o Zapatismo de Chiapas. Portanto, vemos que os fuzilamentos retratados no quadro de Goya servem-nos como reflexão sobre que a burguesia faz, através de seus braços armados, contra qualquer insurgência subalterna ao redor do mundo.

Referências bibliográficas:

DURÃES, Fernando. Walter Benjamin e seu pessimismo revolucionário. https://acervocriticobr.blogspot.com/2017/05/walter-benjamin-e-seu-pessimismo.html. Acessado em: 17 de outubro de 2018.

RUANO, Eduardo Silva. As obras naturalistas do pintor espanhol Francisco de Goya. http://lounge.obviousmag.org/ideias_de_guerrilha/2015/12/francisco-de-goya-obras-impressionistas-de-um-artista-grotesco.html#ixzz5UCbaoxKh. Acessado em: 17/10/18.

LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo; Boitempo, 2005.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

A “nova” esquerda e suas velhas limitações




Quando se conversa sobre a alternativa revolucionária e a crise da esquerda brasileira, não muito rápido o oportunismo e a cretinice teórica se envaidecem.

É bem sabido que com uma “ex-querda” que não consegue enxergar nada que ultrapasse dois palmos do nariz, o trabalho da direita se torna fácil. Isso porque podemos até ignorar por um instante que a direita consegue a incrível proeza de se automutilar (através de seus ideólogos analfabetos funcionais).

Na mentalidade dessas “new-lefts” bastam apenas alguns retoques no Estado para que ele passe de “opressor” a “proletário”; ou seja, bastam-lhe tirar as raposas que as galinhas irão tomar conta do galinheiro onde elas mesmas estão presas. Em meio a tanta decadência ideológica (forjada exatamente no seio do capital monopolista).

Na parte do sujeito arendtiano, mal o sabe que a sua mentora fez uma concepção aristocrática da participação política; isto é, “direito à propriedade” – a concepção liberal-conservadora da sociedade. O pupilo não percebeu que ao longo de sua opinião, tendeu ao elitismo político.

A fé do weberiano “de esquerda” é ainda mais fundamental: Weber era um neokantiano que se preocupa na construção de “tipos ideais” generalizáveis, porque a realidade não passa de fenômenos intransponíveis organizados e hierarquizados pela distribuição de poder na sociedade. Tendo por base as formas de racionalidade (econômica, emocional) nas quais os agentes se baseiam para realizarem as mais diversas escolhas. A problemática weberiana desloca-se para o sujeito e suas escolhas, seus interesses e modos de interação.

Em linhas gerais, assumiu o caráter “moral” do capitalismo através da ética protestante como matriz “moralizante” das dinâmicas capitalistas. Seu discípulo é o típico  malandrão que acredita ser o capitalismo o mais eficaz modo de produção e social já criado. O devoto desse geralmente defende um estado forte capaz de liderar o processo de construção nacional. Ainda que o “capitalismo imperialista”, no qual o lucro resulta da violência política coerciva e expansiva, produz “problemas” a um setor do capital, isto é, sem o identifica-lo como uma fase do desenvolvimento do próprio sistema, trata esse fenômeno como um ato isolado e natural.

Nessa visão jamais propõe uma transformação da sociedade, mas sua legitimação. O que ele diz sobre “poupança”, “atividade racional”, etc. opõe-se ao que Marx chamou, por exemplo, de “acumulação primitiva do capital”.

O Foucaultiano pode ser ainda mais intrigante. Esse sujeito é o verdadeiro tumor teórico dessa sub-esquerda hipster. Normalmente pinta a realidade numa desconstrução racional da razão moderna e a formulação de uma proposição política transgressiva viável à intervenção social de uma esquerda que no pós-68 (culminante após a Queda do Muro) que passa a descrer do socialismo, mas, se põe romanticamente na postura rebelde e transgressiva contra o sistema. Esta rebeldia de esquerda tipicamente adolescente resulta na condenação das forças de contestação à ordem vigente a um fatalismo irremediável.

Isso sem falar na romantização da pobreza e da exploração de classe, como fazem valer nas suas palavras de “gratidão pela vida bela e humilde”; e o tal “socialismo cristão” (versão mal-arrumada da Teologia da Libertação) que encaixa nesse minimalismo fajuto, pela qual quem produz o excedente material deve ter a “consciência limpa” de suas “virtudes” (embora o cristianismo seja melhor fundando ontologicamente que essa ideologia). Hoje em dia esses sujeitos se vestem com roupagem “marxista”.

Resultado disso é o florescer de todo tipo de oportunismo com uma concepção frágil que não viola o interior do parco conhecimento da própria situação de classe e da realidade material. Não atinge aqueles fundamentos que residem na propriedade privada, no capital (em todas as suas formas de manifestação) e no Estado como produto histórico da sociedade de classes que precisa ser superado no interior do processo de transformação do trabalho assalariado em trabalho livremente associado. 

Ao pintarem conjuntamente a “revolução” como inviável ou dependente de uma “etapa” – como se a revolução comunista fosse um “processo etapístico” da “dialética da vida”, não vão além de um mero perfume em merda; pois, nisso se manipulam através de pressupostos contrários às suas aspirações mundanas “abstratas”. Ou pior: a revolução seria coisa do passado, mesmo que a  nossa realidade insista em dizer o contrário para esses sujeitos. A burguesia, para eles, pode até feder, porém, não se pode dinamitá-la!

Em comum eles têm “críticas” pontuais a nossa sociedade (desde que não passe da aparência à essência da mesma). Insistem num lixo abertamente subjetivista do “ponto de vista” eclético e, ao mesmo tempo inútil (ainda que haja contribuições relevantes) que polui à céu aberto a atmosfera social. Não foi à toa que Marx disse que “os filósofos até os dias de hoje se limitaram a interpretar o mundo”, porque para transformá-lo é preciso, antes de tudo, produzir teoricamente aquilo que se dispõe nas condições objetivas da sociedade.

A ideia ingênua de alguma mudança substantiva pode ocorrer no interior do Estado (e isso não significa negar o Estado e suas dinâmicas) é puramente idealista – sempre irá naufragar pelos imperativos da própria sociedade burguesa. O Estado, diferente do “ponto de vista” é um complexo que tem como fundamento a propriedade privada (pensem aí no direito à herança ou o casamento civil), sua existência está ancorada na reprodução sóciometabólica do capital (extração da mais-valia para D–M–D’), independentemente de política pública (“combater a corrupção” – moralismo pequeno-burguês), econômica (taxar fortunas, por exemplo), etc.

Essas são variações no interior da mesma ordem reprodutiva que reformá-lo é a síntese da miséria intelectual e da pulsão genuinamente revolucionária. Como dizia Marighella: “A única luta que se perde é a que se abandona”. E tem gente que nem começou ainda...

sábado, 14 de julho de 2018

Filósofos e “filósofos”: subversão e adestramento




Desde o início aqueles filósofos subversivos e críticos ao modus operandi de suas sociedades tiveram problemas (lhes custando a vida). Foi assim com Sócrates na narrativa platônica e xenofônica; bem como foi com Giordano Bruno na Idade Renascentista; o mesmo se deu com Rosa Luxemburgo na República de Weimar na Alemanha; e, logo após, foi assim com Gramsci na Itália fascista.

Por outro lado, bajuladores do atraso civilizacional, no aconchego de sua mediocridade, na “pluralidade” à desrazão mundana que traçaram suas teorias e lapidaram o mundo do capital, ou seja, a exploração dos seres através da mais-valia como meio “natural” e inexorável ao ser social. No viés liberal-conservador, ainda que pintem com verniz progressista, como Arendt (esta que arduamente atacou o marxismo enquanto seu amigo e filósofo alemão Karl Jasppers foi perseguido pelo nazismo), Marleau-Ponty, Popper e Bobbio temos essas figuras. Nietzsche foi um aristocrata convicto, cujo foi fonte inspiradora de heideggeriana. Até mesmo alguns foram mentores diretos de ditaduras facínoras da extirpe de Heidegger e Schmitt.

Nesses todos há algo em comum na essencialidade: não querem uma revolução social que emancipe o ser humano como tal; no muito um pseudo progresso linear e reformista na sua gradação como se na história houvesse alguma teleologia. Na aparência tentam igualar seus giros linguísticos, todavia, são eles a mais pura expressão da teoria liberal e da decadência ideológica e, portanto, ideólogos do metabolismo do capital e a exploração humana e ecológica. São como Comte, Durkheim, Weber  e Foucault (sociólogos do capital): consultores da burocracia capitalista enquanto epifenômeno isolado e reprodutores de uma legitimação superficial ainda que em suas especulações temos coisas sérias e aproveitáveis, como em outra oportunidade escreve o camarada Felipe Lustosa.

Diferente de Weber, vemos em Gramsci, por exemplo, que os intelectuais e sua função no âmbito da vida social não são conceituados como sujeitos e ações distantes das determinações do mundo real, como um grupo “autônomo e independente”. O italiano desenvolveu a tese que a função dos intelectuais nos processos de formação de uma consciência crítica por parte dos subalternos e na organização de suas lutas e ações políticas dá-se no trabalho educativo-formativo que envolve a elaboração de uma consciência tomada a partir da realidade concreta de mundo.

Hobbes e Locke como pensadores do liberalismo que viria a triunfar na sociedade burguesa, suscitaram o mais vil depauperamento espiritual e consciência humana:  porque o liberalismo que emergiu dos escombros do regime feudal foi o combustível do irracionalismo; porém, este dois pensadores foram honestos na intelectualidade ali disposta: realmente creram no que teorizaram enquanto ideólogos da classe dominante, mas ainda que acreditaram fielmente no mito da “essência humana” a qual medeia as vicissitudes do homem médio.  Os ideólogos ingleses – que além desses dois entram aqui Smith – universalizam o capitalismo como natureza humana, tanto biológica como espiritual (natureza divina). Enquanto isso, a ideologia liberal francesa (Voltaire, Montesquieu, etc.) é juspositivista.

Como diz meu amigo Vinícius Bessi: “Será que isso se explica pelo fato da passagem do feudalismo para o capitalismo na Inglaterra, por exemplo ter sido realizada sem rupturas bruscas da burguesia industrial inglesa com a aristocracia, que por sua vez se tornou em grande parte burguesia fundiária, enquanto na França a passagem foi muito menos orgânica, com rupturas bruscas em processos de grande violência revolucionária?”.

Lukács dizia que as modificações por que passou o original projeto filosófico burguês foram notáveis: a crença no poder da razão transformar em agnosticismo (manifesto quer no positivismo, quer no neokantismo) e a reflexão abandona as grandes temáticas sócio-históricas para converter-se em “guarda-fronteiras” das ciências em que o seu papel limita-se à vigilância “para que ninguém ouse tirar das ciências econômicas e sociais conclusões que poderiam desacreditar o sistema”. 

Sobre o sociologismo vulgar buscado na filosofia política, Felipe Lustosa fez as seguintes ponderações:  fazendo alusões às falseadas de Rousseau, Hume e Hobbes, sempre levam ao misticismo e velam a essência do estranhamento social; velam, dentre outras coisas, as causas imanentes da alienação oriundas das relações de produção que fulminam, como um relâmpago de Zeus, a subjetividade do homem vivo, em especial quando os ditos "filósofos" se transmutam de uma hora para outra em "cientistas-políticos" (ou em outra categoria de abjetos, como é a dos sociólogos) e então se metem a analisar a políticidade e o devenir humano: Acredita-se piamente estar se discutindo política, mas está se discutindo, na realidade, metafísica.”.

E prossegue: Os pensadores do mundo burguês estão somente à mercê do lucro e a reprodução de capital; mantendo a civilização em sua ruína. São detratores da mais avançada filosofia de nossos tempos: o marxismo. Sua radicalidade mantém-nos a chama civilizatória acesa no mundo da obscuridade; refina e lapida seus adeptos para melhor e os torna mais humanos, altruístas, humanistas, críticos, compreensivos entre si e sensíveis ao mundo a seu redor.

A mistificação que esses nobres senhores fazem com toda arrogância, com desdém e estimuladores das preguiças mentais tem alimentado as energias nas moendas de esforços vãos. Ao caírem os ídolos de seus altares e as divindades que os quais veneram, veem-se como dissipam as nuvens de incenso doloroso e pueril. Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de seres mecânicos e alienados à própria realidade, sem o poder da crítica imanente que emerge da concepção de mundo.

O liberalismo contemporâneo é intrinsecamente conservador em sua raiz. A antropologia do liberalismo foi teológica, pois eles imaginavam as características de Deus, aquelas que remetem a perfeição e a virtude como um ideal que o homem devia perseguir. O rompimento de outrora do jusnaturalismo fora apenas parcial em sua gênese; apreensões descompromissadas criticamente surgem como forma de legitimação desta sociabilidade a impedir quaisquer mudanças substantivas no seu interior: o reino Sagrado do mundo burguês. Para o liberal moderno, bastam-lhe as virtudes teológicas, a mais vil forma de perpetuação das mazelas mundanas. 

Não à toa Marx sofreu penúrias (em que seu grande amigo e Engels esteve a ajudar) que mesmo depois de morto culminou no suicídio de uma de suas filhas após ser estuprada por policiais da burguesia londrina; e Lukács debruçou literalmente até morrer para constatar algo em comum...

A filosofia serve como a crítica do velho mundo, significa também criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. É preciso ser radical, tomar as coisas pelas raízes, e a raiz do ser humano é ele próprio para sua transformação – e os filósofos têm este compromisso com seus pares. Para isso nos basta a Tese Onze sobre Feuerbach...


Recado básico e importante:

Não choremos pela burguesia ser burguesa, lutemos para que ela seja apenas um passado da pré-história da humanidade, assim como a própria classe trabalhadora. A ditadura do proletariado não terá como objetivo à política como tal, mas a sua extinção!

sábado, 7 de julho de 2018

A irracionalidade dentro da militância de ideologia pequeno-burguesa





INTRODUÇÃO

A foto inicial é o nosso objeto de crítica. Não apenas, compreender a sua epistemologia, por assim dizer, mapeá-la de forma “impessoal” de como a “subjetividade” desse pensamento é mais pueril e tão decadente quanto a tentativa falha de “moralizar”.

Quando o filósofo alemão Jürgen Habermas falou em “razão comunicativa” através da intersubjetividade humana em que os seres através da linguagem procuram entendimento entre si, seja para as relações “institucionais” (por exemplo, o “juramento médico”), seja para as relações pessoais (por exemplo, resolver pequenos conflitos de interesses mútuos), o pessoal elevou a enésima potência – ainda que sem saber disso – para um “irracionalismo da razão”.

É uma teoria que se fundamentou no conceito de ação, entendida como a capacidade que os sujeitos sociais têm de interagirem intra e entre grupos, perseguindo racionalmente objetivos que podem ser conhecidos pela observação do próprio agente da ação. Habermas priorizou, para a compreensão do ser humano em sociedade, as ações de natureza comunicativa, as ações referentes à intervenção no diálogo entre vários sujeitos. Habermas era da assim chamada “Escola de Frankfurt” das ciências humanas.

No sentido marxiano, a razão, em contrapartida, entendida como uma figura histórica e socialmente constituída reproduz, de certa forma, esse mesmo sentido. É, por isso, reprodutora de sentido e nunca sua usina originária como ocorre na atualidade em que se vive no interior de um verdadeiro imperialismo da subjetividade. 

A organização do mundo pela cabeça, pela razão, entendimento, ou coisa que o valha, seja em que variante for – de Kant a Husserl –, pode ser feita de vários modos; em todas, no entanto, restará algo de fora do mundo, seja uma opacidade intransponível, e a cabeça organiza o mundo apenas em parte, restando ela própria , àquela que parte do sujeito para o exterior – em Platão, Agostinho e Descartes. Basta que lembremos do “Penso, logo existo” do francês Descartes.

Materialismo ou idealismo? 

Feita uma introdução ao que seja a “razão” (ainda que rasteiramente), prosseguirei o texto de forma mais direta. Quando mencionei a questão do racionalismo de Descartes, no seu “Penso, logo existo”, aqui se instaura uma coisa muito importante que pouquíssimas pessoas, até mesmo de dentro da filosofia compreendem: a inauguração da “liberdade subjetiva”. O que seria isso a partir da interpretação do racionalismo cartesiano?

De forma bem resumida e simples, dizemos que o ato de “pensar” para Descartes pressupõe uma existência de algo que pensa; assim sendo, se há algo que pensa é porque há uma matéria pensante (e dotada de razão). Se o pensamento é parte integrante do ser que existe – portanto, pensante – ele tem, em si, a certeza de sua existência através do pensamento. Em outras palavras, isso tem um pressuposto fundamental: se o pensamento é íntimo à pessoalidade mais profunda dela mesma, logo, ninguém a não ser ela própria pode ter acesso ao que ela pensa. Ainda que alguém abra a cabeça dela com um machado ou passe por um trator em cima do cérebro, o que está sendo pensado jamais poderá ser impedido de ser pensado enquanto pensamento; é impossível, todavia, que sejamos impossibilitados da nossa faculdade do pensar, seja quaisquer que forem as nossas perversões, etc.

Mas, isso gera um problema óbvio que na filosofia materialista, ou seja, onde está também o alvo fatal da crítica empirista (com exceção de Berkeley) – Desde Locke até os mais contemporâneos passando pelo Hume. Um desses críticos do chamado racionalismo absoluto – ou que a forma de conhecimento de mundo se daria apenas pela razão – ou na sua primazia (aqui de modo mais genérico e comum), foi o próprio Marx. E assim ele diz na Ideologia Alemã:

“Para os filósofos, deixar o mundo do pensamento para descer ao mundo real é uma das tarefas mais difíceis que existem. A realidade imediata do pensamento é a linguagem. Da mesma forma que os filósofos fizeram do pensamento uma realidade autônoma, também não poderiam deixar de atribuir à linguagem uma realidade autônoma para fazerem dela o seu domínio privativo. Eis o segredo da linguagem filosófica, em que os pensamentos têm, enquanto palavras, um conteúdo próprio. O problema de descer do mundo das ideias ao mundo real reduz- se ao problema de passar da linguagem à vida.”.

Em outras palavras, à linguagem está a consciência prática, isto é, à ação que conduz as nossas subjetividades que se objetivam-se perante o mundo real. Não obstante que István Mészáros teve muito a dizer sobre isso:

“Todos nós temos consciência da desintegração do pensamento e do conhecimento num número crescente de sistemas à parte, cada qual mais ou menos autossuficiente, com sua própria linguagem, e não assumindo a responsabilidade de saber ou preocupar-se com o que vai além de suas fronteiras.” (MÉSZÁROS, I; 1981, p. 269).

Subjetivismo ou objetividade?

O discurso do indivíduo isolado em que se pretende o seu próprio nariz ser parâmetro do que seja a realidade, isto é, não existindo mais verdade objetiva e universal, relativizada e tornada dependente das “narrativas” dos sujeitos. O discurso que deveria passar o sentido das ideias, torna-se aqui a estética do que se apresenta, não no que se trata objetivamente como a concreção conceitual da regência imanente das coisas existentes.

Num certo sentido, todos nós estamos sujeitos a ficar insatisfeitos uns com os outros. Homens e mulheres, nas relações simétricas socialmente engendradas. Schopenhauer fez uma análise brilhante sobre isso: de forma rasteira, mal nós satisfazemos um desejo ou uma necessidade, logo criamos outros, o que nos torna para sempre insatisfeitos.

O ranzinza teve suas “razões” para isso. Schopenhauer – e vale lembrar das palavras de meu camarada Felipe Lustosa – teve a seguinte percepção: “não adianta tentar jogar pérolas aos abutres; estão tão desumanizados porque não conseguem captar a filosofia e ainda voltam as suas cúspides afiadas e seus cascos contra aqueles que desejam elevar a condição humana, i.e, voltam-se contra aqueles que desejam reefetivá-los e promovê-los a homens cientes de si e da natureza que os abarca, preferem o charco, o atoleiro e a lama”.

A abstração “homem” (aqui no sentido de “ser dotado de um pênis”) “odiado por comportamentos e atitudes vinculados ao padrão de comportamento de uma amostragem de homens” tivesse algo de plausível, teríamos que entender uma problemática: a abstração no sentido de Marx é compreendida como o primeiro momento da concreção, não é um contorno fixo, mas um nódulo elementar pronto a se transfigurar no roteiro especificador, singularizador da concreção. Portanto, não se trata de um procedimento regido por regras formais ou por uma normatividade arbitrária, mistificadora, como sugere essa “crítica fuderosa lacrou contra os ômis”.

Concernente a isso, o amigo Erik tem os seguintes dizeres: “Pois quando o sujeito é tornado o fundamento da legitimidade e verdade do discurso, todo e qualquer discurso se torna automaticamente legitimado. Aliás, não há mais como se falar em legitimidade. Se cada cultura ou indivíduo é o lugar próprio da justificação e da verdade – e disso resulta uma discordância a mais natural de se esperar -, o que é que pode servir de critério para avaliar qual está certa e possui legitimidade ao reivindicar tal e tal direito?”.

Sem uma crítica racional e objetiva não há avanços nessa matéria. E como o pior dos mundos possíveis sempre se torna real, por essa via abre-se todo um campo de oportunidades de cooptação, irracionalismo das lutas – ainda que válidas – , justamente o inverso que esse discurso prometia oferecer. Para isso, mais vale um Rousseau do que um Foucault.

Existe uma “cultura” machista? Inegável. Tanto que há mulheres que além de reproduzi-lo, chegam a defendê-lo. Existe, por outro lado, homens que rechaçam o machismo. Aí já nem tem o “local de fala”, pois “tudo depende do ponto de vista do observador”. Ou não... O que importa, em primeiro lugar, é a descrição objetiva dos fenômenos, sua veracidade ou falsidade advém daí e não da melanina ou do útero.

Em segunda lugar, importará em um grau relativo, caso haja qualquer tipo de interesse do emissor nas imbricações do fenômeno social em questão que podem ser proporcionados por vários motivos, dentre eles a posição do locutor na sociedade que pode ser determinada ou não por atributos biológicos. Isso é relevante para sabermos de onde vem e quais os interesses da pessoa que emite um significado aos fenômenos. Contudo, isso por si só não garante que seja verdadeiro ou falso o conteúdo emitido.

Existiam escravos a favor e contra a escravidão, existem mulheres contra e a favor ao feminismo. A posição privilegiado/desprivilegiado, portanto, apenas dá uma presunção relativa da possível posição a ser tomada pela pessoa, mas nunca uma presunção absoluta.

Parece óbvio para alguns, mas vale ressaltar: os indivíduos que formam a classe dominante possuem, entre outras coisas, também uma consciência e, por conseguinte, pensam que uma vez que domina como classe e determinam todo o âmbito de um tempo histórico. É evidente que o façam em toda sua amplitude como consequência. E também dominem como pensadores, como produtores das ideias sejam, em consequência, as ideias dominantes de um tempo.

Exemplos não faltam. Não são nem exceções, mas, regras!

Se você fala de subjetivismo no identitarismo negro, você é racista; a sua pessoa se torna a pauta da discussão e você é tachado como tal. No feminismo, se você faz ponderações – ou, no melhor dos casos, quer “participar” – você é chamado de machista, “hétero dando pitaco”, “quer xoxota”, etc. No LGBT, é taxado logo de homofóbico ou “privilegiado”. Percebem que a ideologia dominante opera entre os dominados (mesmo que este último insiste em dizer o contrário)?

É óbvio que a experiência subjetiva dos agentes é importante para a compreensão dos fenômenos, mas é insuficiente, porque tal subjetividade depende de uma objetividade factual existente e sua genealogia, desenvolvimento e progressão vão muito além da experiência subjetiva dos agentes nesse fenômeno. O lugar de fala, portanto, é a supressão da objetividade pela subjetividade tomada em seu caráter mais profundo. Não se pode negar, por exemplo, espaços em que LGBT’s, mulheres, etc., merecem destaque para seu protagonismo (outro termo que temos de tomar cuidado). Assim, porém, mais mulheres na política por si só não representará mudanças substantivas por si na realidade delas (machismo).

Outra coisa que a militância irracionalista, desprovida de qualquer materialismo (para não dizer da mais alta filosofia de nosso tempo: o marxismo) não compreende, pois, imersos em subjetivismo e solipsismo pueril estão longe de ir à gênese das coisas. Novamente, como diz Felipe Lustosa:

“O patriarcado não é um subjetivismo que jorra do homem solipsista como “ato irrefletido”, como vileza inata ao gênero masculino ou como forma desmedida da pulsão ferina no indivíduo homem em sociedade contra as mulheres. O patriarcado é, ontologicamente, todas estas formas da reprodução de um tipo social; antes de tudo, um reflexo estranhado de uma sociabilidade reificada e mediada pela produção ampliada e circulação de valores de troca onde o ser humano se autoproduz como objeto. Ademais, o complexo da ideologia operando à verossimilhança do complexo do trabalho alienado e plasmando pôres-teleológicos secundários, são antes disto, (ainda da perspectiva da centralidade do trabalho) a entificação das relações de produção anteriores àquelas relações de assalariamento expressas pelo capitalismo, que tinham no desfruto da humana e no mais-trabalho (no barbarismo, no escravagismo e na servidão e a família patriarcal) sua explicitação concreta.”  

Considerações quase finais

Portanto, não é um “ser por ser” ou “querer ser” como se o homem fosse um oásis da sociedade. É uma estruturação ontogenética, como colocou Engels em sua A origem da família, do Estado e da propriedade privada. Mesmo que os seres reproduzam isso sem a consciência plena do que fazem, eles mesmos podem, certamente, ser “transformados”. Porém, isso não paira sob as cabeças como um éter a vigorar como fogo no pavio e se espalha; é uma agua que bate na pedra até furá-la lentamente, porque as estruturas de Estado, as dinâmicas capitalistas e suas instituições (como a cultura, religião, moral e a política) concentram-no objetividades que sobrepõem sua racionalidade.

Diferente dessa compreensão totalizante do mundo, os movimentos que estão compelidos a um turbilhão frações que não encontram seus nexos causais, uma vez que quando tentar abranger ou dar conta de compreender a alguma manifestação social ou a algum epifenômeno, precisa multifacetá-lo em micro instâncias a fim de dinamitar o todo que expressa e fracionar as relações do ser. Os fundamentos da forma de como as coisas decorrem para esses movimentos “reformadores” ou “desconstruidores de conceitos”, são sempre incompletos, relativizadores, irracionalistas, despidos de historicidade, materialismo e da dialética, ou seja, tudo daquilo que é mais avançado ao desvelamento da essência do objeto: a compreensão ontológica e crítica do mundo real.

A legitimação da lógica patriarcal e o machismo feudal, dos laços de vassalagem e de suzerania médios; a abnegação da mulher ao lar e aos costumes domésticos e, não obstante, à serventia por parte desta de corpo e alma ao seu amo, possuem consolidações na sociedade burguesa.

A crítica ao irracionalismo intelectual

Não passando daquilo que Santo Agostinho chamou de “o Deus que habita em mim” em suas Confissões. O Deus é o meu “lugar de fala” para ser idiota, no seu livre-arbítrio, desde que o ser social renascentista rompeu com o tomismo e com a escolástica. As “revelações de Deus” e a concepção teocêntrica de cosmos e com a noção encanecida que fosse uma criatura concebida por um primeiro motor-imóvel de Aristóteles, municiado de um teleologismo apriórico e transcendental ainda é a epistemologia dessas “novas-esquerdas” porque aqui se encontra o modelo antropocêntrico de cosmos: burguês, individualista, laicizado, ainda que se faz racionalizado.

O ser social da modernidade é este típico dominado pela ideologia pequeno-burguesa, surgido dos escombros de um mundo medieval e feudalizado, ainda que negue isso até as profundezas do Hades. A mais profunda alienação num esgoto onde nos afogamos todos.

Para explicar mais sucintamente sobre essa ideologia produtora e reprodutora da matriz causal dessa decadência intelectual, o filósofo húngaro György Lukács, dirá:

“Cada vez mais, a sociedade se apresenta ao pensamento burguês como um amontoado de coisas mortas e relações entre objetos, em lugar de nele se refletir como é, ou seja, como a reprodução ininterrupta e incessantemente cambiante de relações humanas. O clima mental assim criado é muito desfavorável para o pensamento dialético (...) A maior parte dos intelectuais encontra-se, com efeito, muito afastada do processo de trabalho efetivo que determina a estrutura verdadeira e as leis de evolução da sociedade; estão tão profundamente ajustados na esfera das manifestações secundárias da produção social - que consideram aliás como fundamentais - que a descoberta das relações humanas mascaradas pela alienação, torna-se para eles coisa impossível. Em definitivo, é tão grande o abismo entre a realidade e o pensamento, que só reflete suas manifestações superficiais, que toda transformação na evolução social se apresenta para o pensamento sob o aspecto de uma ruptura inesperada e apenas pode provocar uma série contínua de crises.” (LUKÁCS)

Importante constatar que o “comportamento” do ideal burguês, ou seja, na sociedade burguesa, não é, nem será sinônimo de “estar na classe burguesa”. Trata-se de formas de reprodução do real na sua práxis desagregada. Nem deveria haver novidade nisso. Segundo Lukács, a burguesia à medida que se transfigura de classe revolucionária em classe reacionária (mantenedora da ordem sistêmica, principalmente após 1848), se comprometeu a engendrar uma época de decadentismo ideológico e de assalto à razão os quais estão diretamente ligados pelas relações de produção capitalistas.

Neste imenso um complexo de alienações e por uma gama de fetichismos que possuem seu núcleo duro calcado no fenômeno do irracionalismo, por sua vez, inextrincável ao metabolismo societário do capital e à teia ideológica que estão ligados, mal se atentam que . Bastam-nos ver as propagandas de empresas dos mais diversos seguimentos – desde cosméticos até fast foods – com slogan “inclusivo” para abocanhar das pautas identitárias seus novos “mercado-consumidores” que se sentem “representados”.

Interessa-nos discutir, vale frisar, a primeira e fundamental forma de censura. Porque ela tem um apelo estético atraente que até tem verniz de racional; por isso, convence e arregimenta um amontoado de gente com supostas boas intenções. É estético porque não importa o que você diga, fundamente, etc., o que lhes interessam é “como você é”.

Próximo passo

Quando Lênin escreveu que “sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário”, ele já tinha plena consciência da questão da práxis social dos sujeitos. Não é a consciência que define a existência dos homens, mas a existência e as relações de produção efetivas que cunham, em primeira instância, as diversas formas de consciência e de interações recíprocas entre seres sociais, inclusive as estranhadas.

E ainda lembrando Lênin, as mulheres serão protagonistas de sua própria emancipação, mas isso não se dará apenas pela “força subjetiva da ideia”, nem por “locais de fala” – eufemismo para sectarismo liberal que foge e muito a qualquer materialismo. Sobre isso, a emancipação humana, em sua concretude, não será feita ou por homens ou por mulheres independentes de seus comportamentos, mas sim por “proletários de todo mundo” que estarão unidos, juntos para a ruptura do velho mundo, não em sua retração civilizacional.

“Hegel faz do homem o homem da autoconsciência, em vez de fazer da autoconsciência a autoconsciência do homem, do homem real, e que, portanto, vive também em um mundo real, objetivo e se acha condicionado por ele. Ele vira o mundo de ponta-cabeça, o que lhe permite dissolver tanto na cabeça todos os limites, e isto os faz, naturalmente manter-se de pé para a má sensoriedade, para o homem real. Além do mais, para ele vale como limite tudo o que denuncia a limitação da autoconsciência geral, toda a sensoriedade, a realidade e a individualidade do homem e de seu mundo” - (Marx, A Sagrada Família, Boitempo Editora, pág 215)



Referências

HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus, 1988. v. I e II.

LUKÁCS, György.  Existencialismo ou Marxismo?. Trad. José Paulo Netto. Rio de Janeiro; Editora UFRJ.

MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo; Editora Boitempo, 2007.

MARX, Karl. A Sagrada Família. São Paulo, Editora Boitempo. 

MÉSZÁROS, István. Marx: a teoria da alienação. São Paulo. 1981, p. 269.

VAISMAN, Ester. Marx e a Filosofia. Revista: Nova Economia_Belo Horizonte. 327-341. mai-ago, 2006.




sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

A tragédia shakespeariana no mundo do capital

Johann Heinrich Ramberg. Hamlet, Act III, Scene 4, Ghost, Queen, and Hamlet. Watercolor drawing, 1829


Às vezes me pego a pensar sobre a cotidianidade. Nesse âmbito, o “dois em um socrático” é onde que partilho do pensamento de Parmênides de Eléia: “O ser e o pensar se dão ao mesmo tempo, é uma só coisa (...) [,] sem o ser, no qual o pensar se encontra expresso, não há pensamento”.

Faço das palavras de meu nobre camarada Felipe Lustosa às minhas: “o egoísta, o reacionário, o preconceituoso, o biltre social, o flagelo da cidadania, o marginal, o xenófobo e etc. não são expressões da totalidade genérica humana e ‘da vileza e mesquinhez inatas à espécie’, expressas como epifenômenos genérico-sociais no ‘Leviatã’ de Thomas Hobbes. Mas, manifestações de uma parcela ampliada da totalidade que possui sua subjetividade despedaçada e sua humanidade mutilada, pelas relações de produção capitalistas, pelo processo de reificação e pelos complexos de alienação, os quais foram desvelados pela lupa de Marx.”.

Como na peça “Hamlet” de William Shakespeare, a qual li recentemente (uma leitura inspiradora e genial, como é marca do autor), resta-nos a tragédia após a loucura se materializar em meio as traições, violências, mortes, cujo personagem evidencia o retrato do mundo em si mesmo, por sentir-se impotente e solitário em meio ao seu mundo. Por intermédio de uma vivência dolorosa que o compele para a reavaliação e o conduz à morte. Shakespeare remonta a vida como ela é em seus abrutamentos dos sentimentos: amor, desconfiança, tristeza, ódio, vingança, presentes em nós no que há algo de podre do Reino da Dinamarca.

Se um homem não ouve, por um dia que seja, uma boa melodia ou sinfonia que revigore seus ouvidos humanos; se não pode ver uma boa película; ir ao teatro ou a um concerto assistir a um bom drama ou apresentação musical; se o sujeito não folheia uma boa obra filosófica ou de história uma vez por semana para pôr-se a conhecer e lubrificar seus olhos e exercitar seu intelecto; se não se pergunta de onde veio e qual a origem das coisas; ou deixamos de compor uma música, ensaiar um acorde, escrever um poema ou uma obra literária; conversar sinceramente com quem gosta ou deixar de expressar sua singeleza humana para seu outrem; ou vislumbrar a natureza bruta, este ser se barbarizou a cada suspiro de vida.

Contudo, é importante lembrar que a culpa não deve cair no indivíduo único, ao ser humano isolado, pois que o homem não é o que fez de si – ele é antes de suas escolhas próprias, o estado, a sociedade dos homens e o mundo humano objetivado enquanto pertencente a ele. Rousseau foi um magnifico pensador que em seu “Emílio” afirmara: “[...] aquele que inventa relações imaginárias que não têm nem realidade nem aparência é um espírito louco, alheio à sensação; aquele que não compara é, simplesmente, um espírito imbecil.”.

A pessoa que vive isolada ou pensa ser o umbigo do universo é, segundo Aristóteles descreve em sua “Política”, “[...] ou é uma besta, ou é um Deus”. Porém, superamos há muito o estágio das bestas à medida que humanizamos o ser e também estamos longe de sermos alguma divindade. A personalidade do indivíduo único, em seus gostos e caldo de cultura, são em larga medida condicionados pela materialidade das relações de produção, as quais estão subsumidas à valorização do valor e à circulação de mercadorias “consuetudo est altera natura”.

A cotidianidade do capital mutila ao sujeito que se perdeu materialmente ao passo que o exaure em espírito, sem que este perceba a raiz imanente de seu estertor. As potencialidades peculiares do ser social, enquanto tal dissipa-se no ar como feitiçaria e poeira. Contanto, sua raiz imanente subjaz na fábrica, no seu trabalho nas moendas de esforços, suor e sonhos do capitalismo: quimera fugaz e esfacelada, em sua “alma” comercializada.

Pensemos, aqui, o consumidor de lixo virtual, adulador de lixo artístico, o retardo mental Hollywoodiano cinematográfico, de astrologia fajuta e livros de autoajuda assinados por mercenários metidos a intelectuais.  A nossa sociabilidade em “decadência ideológica burguesa”, conforme desvela Lukács, por vaidades estéreis e condicionamentos estúpidos pela ideologia mercantil e alienante em sua generalidade, se torna a cada momento mais fascista, mesquinho, egoísta, e mistificado e violento.

Como o psicólogo Lev Vygotsky afirmou em seu conhecido artigo “A Transformação Socialista do Homem”, [...] essa mudança no comportamento e na personalidade humana tem que conduzir, inevitavelmente, à evolução do ser humano para um novo tipo, superior, para a posterior modificação do tipo biológico humano.”.

Um povo que não pensa criticamente e nem é estimulado a isto é como o Sol vedado pelas nuvens mais escuras e carregadas pela tempestade de obscuridade humana. E Shakespeare ultrapassa o nível de bom observador por conhecer muito bem o ser em estado embrutecido pelas relações que o descaracterizam. Ele não era um filósofo, entretanto, ouso dizer que ele era mais do que um dramaturgo: revela ali ainda cedo o espírito animalesco do ser irrefletido perante o meio obscuro a partir do mundo que o cerca.

Portanto, “A vida não examinada” – como afirmava Sócrates –, “é uma vida que não merece ser vivida”. Assim, a filosofia é a arma teórica do proletariado, do oprimido, ao passo que o proletariado e o oprimido tornam a arma prática da filosofia. A filosofa é a mente, e o proletariado, coração. A filosofia não pode se realizar sem seu corpo que é o proletariado, bem como o proletariado não pode emergir-se sem a realização da filosofia. 


sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

A crise incontornável do capital

Depois de mais alguns meses parado, retomo as postagens do blog! Dessa vez o assunto é economia política. Um breve texto, cujo qual, tem base através de um texto do meu amigo Diogo Zarzar em seu blog (Conhecimento Econômico):  Uma crise econômica sem fim?.

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O sistema do capital parece não aguentar-se por muito tempo. Não para menos os imperativos dele tornaram-se evidentes à sua incontrolabilidade e autoexpansão. Economistas vulgares do mainstream bem que tentam, entretanto, é inegável que a “gestão da crise” é o que lhes restam.

Os países sul-americanos estão todos em crise ou contendo gastos, impulsionados pelo rentismo, principalmente os mais importantes da região (Brasil e Argentina). A Venezuela, na época da alta de commodities, a grande vedete da América do Sul, hoje vive dias de tristeza e boicote econômico. Austeridade fiscal, inflação, brigas políticas, tink tanks liberais, etc. tomam conta do nosso cenário.

Espanha, Grécia, Irlanda, Portugal, Itália e afins não conseguem se recuperar da hecatombe fiscal de 2011. O leste asiático tem seus altos e baixos entre países como a China cuja cresce exponencialmente no mundo e a Índia (este segundo com uma desigualdade gritante); os periféricos da região estão em crises ou até mesmo com conflitos internos gravíssimos, como é o caso de Myanmar, Bangladesh, Iêmen (cujo há mais de 7 milhões de pessoas de famintos etc. A ONU alerta que vivemos a pior crise humanitária em 70 anos.

Nos anos 70, a crise dos emergentes e pobres decorria da alta do petróleo. Nos anos 80, da escalada da dívida pública via juros altos do FED e também do segundo choque do petróleo. Nos anos 90, sucateamento dos serviços públicos, diminuição de gastos públicos, demanda raquítica, desemprego absurdo, etc. com a desculpa neoliberal de ser “escolha racional” pela redução do Estado e despolitização dos setores produtivos e dos serviços essenciais.

Nos anos 2000 houve um inflacionamento das commodities devido ao crédito sub-prime dos EUA, aliado com a máquina belicista para financiar a “Guerra ao Terror” e o crescimento com apetite voraz da China, depois de ser reconhecida como “economia de mercado” pela OMC em 2001.

Agora, após o “crash” dos EUA de 2008/2009, houve a crise fiscal de vários países (inclusive da zona do euro) em 2011 e uma redução dos preços de commodities, além de valorização do dólar em relação a todas as outras moedas nacionais (sobretudo dos emergentes).

O Brasil, como outros vários outros, apostaram na abertura de mercado desenfreada (uma ideologia importada dos corredores de Chicago) com câmbio sobre apreciado e na destruição criativa de Schumpeter nos anos 90, mas não deu resultados expressivos.

Lembremos que há um imenso debate entre os sociais democratas intervencionistas sobre os termos “social desenvolvimentista” e “novo desenvolvimentista”. Os intervencionistas críticos – mas nem tanto – do governo Dilma falam que o governo da mesma seguiu o social desenvolvimentismo, ou “keynesianismo vulgar”, seguido do início do segundo mandato com um recuo neoliberal totalmente suicida com a austeridade fiscal. Bem apelidada de “austericídio”.

O governo Temer chegou com um verdadeiro “agendão” neoliberal bem daquela do final dos anos 90. Aprovaram a PEC 55 com maioria nas duas casas do legislativo; reformaram o ensino médio; colocaram o déficit nas contas do governo lá em cima para conseguir credibilidade do mercado; um privatista está na direção da Petrobras que agilizou venda de ativos da Petrobras (Petroquimica Suape, por exemplo); e a entrega do pré-sal aos especuladores estrangeiro, etc.

Não há, porém, dinheiro jorrando no mercado. Os Estados, por sua vez, por mais que setores reformistas insistam em dizer o contrário, tornaram-se reféns do financismo mundial. Não há perspectivas de soluções que não se passe pela ruptura total e radical desse financismo/rentismo. O Estado de Bem-Estar social, ao meu ver, está se exaurindo (link para artigo em pt.br), visto que o imperialismo e a intrínseca extração da mais-valia é necessário para sua manutenção (só pensarmos na expansão dos mercados dos países do norte europeu).

Apesar de toda incerteza e o completo fiasco da cartilha ideológica neoliberal e imperialista mundo a fora à custo gigantesco (seja humanitária ou seja ecologicamente), uma coisa é certa: o reformismo esgotou suas potencialidades; e, portanto, repensar por completo o modelo de produção torna-se urgente. Esse modelo tem nome – o socialismo – como forma de superação das contradições internas ao capitalismo e da barbárie.


Pode anotar, seu otaku fedido!