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quinta-feira, 13 de outubro de 2016

“Anarco-capitalismo”: a nova seita religiosa dos ideólogos virtuais


Vejo nos círculos dos “ateuzinhos” de Internet, especialmente quando se trata dos ateus liberais de direita, uma sapiente crítica ao “malvado” Estado, onde na mais alta “intransigência”, de aspirantes à ciência, sustentando e disseminando uma nova religião: o anarco-capitalismo. Como dizem os evangélicos, devemos amar o pecador, não o pecado.

Se a descrença em divindades pressupõe um ateísmo ou um agnosticismo (porque o ceticismo é o modo pelo qual se faz “ciência”), os devotos desta nova doutrina coabitam os círculos “científicos” – fora dele já não espero outra coisa além de estupidez e um crônico analfabetismo político.

Apesar de alguns desses discípulos serem “inteligentes”, “questionadores” e, mais além, “RACIONALISTAS”, a teoria não é coerente, nem sensata, bem construída, e muito menos racional. Mas por que?

Ora, porque esta mitologia não corrobora a realidade! Assim como a teologia cristã tenta explicar as origens das coisas por meio de um livro histórico, os devotos do ancap tentam “propor” uma regra-geral: IMPOSTO É ROUBO.

Anarquia com capitalismo é um antagonismo. É como defender água seca, luz escura, paz violenta. Explico: uma anarquia é um sistema onde não há governos. Não há leis a serem seguidas. Não há nem democracia, nem voto. É o sistema do “pode tudo” e seja o que Deus quiser (neste caso, o Deus-mercado). Aliás, nem mesmo o que “Deus quiser”, uma vez que a maioria dos anarquistas teóricos rejeitavam Deus e até Proudhon disse: “Deus é o mal”. Mas, ao que parece, para os ancap’s, Deus é o capitalismo e o imposto é o Satan!

Vejam bem: para haver capitalismo é necessariamente obrigatório o Estado para garantir a propriedade privada. Ou seja: é necessário que haja algum tipo de instituição, por menor que seja, que garanta esse consenso no local – ou, o contrato social, basicamente.

O Estado é fruto das relações de produção. É indiscutível isso. Nele que sistemas baseados na propriedade e no lucro se resguardam. “Mas os impostos alimentam a máquina estatal”. Assim como a mais-valia é negligenciada pelos “céticos-ideológicos-anárquico-capitalistas”.

Os “teóricos” dessa Santa-Ideologia mercantil suplicam arduamente que o “Estado tira do trabalhador” e por isso o ‘imposto é roubo’. É das mais risíveis argumentações e rigidez pelo qual eles vociferam por aí, porque dentro de seus gabinetes defecam seus idealismos para encaixotá-los na realidade.

E nossa realidade é dura para esses defensores da ciência que debocham dos cristãos. São faces da mesma moeda: de um lado um teorismo pedindo o porquê do imposto não ser roubo e do outro imploram para explicar “quem criou o mundo” ou “se o homem veio do macaco, por que até hoje macacos não viram homens?”. O ônus da prova é o recurso argumentativo de ambas religiosidades: você não explicou, logo estou certo. Assim é o pressuposto “rígido” dos ultra-questionadores das ciências sociais.

Vamos ‘materializar’ isso: anarquia é ausência de governos. Capitalismo é coerção. Portando, quando é “tudo liberado” o poder dos micro-governos atua, pois se quando um grupo detém o monopólio “legal”, outros serão obrigados a se submeterem. Espera! Isso não parece um “Estado”? Sim, não só parece, mas como de fato é um “Estado-Privado”. Capitalismo é coerção, repito.

Entendo que muitos jovens pensam que a tendência é “liberar geral” e onde cada um será “livre para sempre”. Entretanto, masturbar em praça pública olhando para mulheres desconhecidas não deveria ser tão liberado assim. Eu sei que muitos “céticos” já ligaram o “foda-se” porque o Estado não pode sair proibindo “todas as formas de amor”. Mas quando o vizinho estiver mantendo relações sexuais com crianças no meio da rua, essa proliferação de más ideias não irá parecer tão bonitinha quanto no slogan. Porque o Judiciário sequer existirá e, também, o contrato social é inexistente – por isso o Estado é inexorável na sociedade atual.

Mas estamos numa anarquia capitalista onde não há um governo para cuidar de sua retaguarda caso você queira bancar o herói contra a pedofilia. E se você conseguir salvá-las e ainda chegar com vida em sua propriedade? Sempre há o risco do pedófilo buscar justiça num desses tribunais privados que concordam com ele. Enfim, vencerá o mais forte desses microgovernos.

Outro exemplo concreto para os sacerdotes do “imposto é roubo” pensarem: imaginem o caso em que o dono de uma rua que cerca sua casa o proíba de transitar por ela (nesse mundo de algodão doce onde tudo é de alguém), isolando-o ao ponto de comprometer sua integridade física. Após isso surge o questionamento: “mas o que o imposto tem a ver com isso?”.

Respondo: o imposto é parte indissociável da organização social e do convívio entre todos. É parte desse contrato social. O imposto é para que esse todo possa, no mínimo possível, ter a liberdade de, ao menos, transitar às ruas, não ser assassinado porque impediu um pedófilo de molestar alguém ou evitar um estupro a uma mulher que passava numa rua “privada” e por aí vai...

O imposto não é roubo, porque roubo é uma coisa e imposto é outra. Essas falsas analogias de “um cara que te assalta e pega seu dinheiro é como o Estado que pega nosso dinheiro como impostos” é só um devaneio ideológico tupiniquim de quem ainda estoura espinhas na cara – e o pior: parece não viver em um mundo real, mas aquele fantástico mundo unicorniano da rebeldia dos ateuzinhos-céticos devotos de uma teologia que vai só até onde a mãe entra no quarto e manda arrumar a cama – ou dos adultos “inteligentes” frustrados pelas circunstâncias da vida, sabe-se lá o motivo.


vá com Deus!


Adendo: um leitor do blog, Euclécio Josias Rodrigues, fez um comentário acerca do texto que deixo aqui para complementá-lo:

“Poderia ter ido mais longe nas analogias, p. ex., explicar como seria difícil manter a ordem, as propriedades sem a máquina pública; demonstrar mais qual o papel do Estado na manutenção, regulação e fiscalização dos mercados; qualidade dos produtos; ordem social; segurança, etc. Uma analogia que poderia ser usada ali é “seres do mesmo bairro” (claro, em uma hipotética realidade em que o ancapismo aconteceu): estes seres resolvem instalar uma rua asfaltada e iluminada para melhorar o acesso, então os vizinhos vão combinar entre si um valor e pagar, porém, para ficar justo, eles criam um valor padrão para todos, isso já é uma forma de imposto. Em outras palavras: você pode argumentar que é algo que partiu da necessidade dos indivíduos os quais resolveram pagar. Ok, então imagina que algum resolve não pagar “não pode utilizar a rua”, poderiam dizer “mas aí, quem iria fiscalizar se ele está usando ou não?” e se ele usar quem iria punir? Os vizinhos se reuniriam e iam tomar alguma atitude... pronto, temos um novo tipo de organização social com impostos que, caso alguém não pague, ele será punido.

Você está percebendo alguma relação com a forma como o Estado funciona hoje? Se sim, não se preocupe, é para isto que o Estado surgiu: a diferença é que ele existe há anos e todos estes pormenores já foram solucionados, já foram pensados nas várias consequências, nas causas e efeitos, nas punições, nos julgamentos do que é justo e o que não é isso evoluiu e foi aprimorado tanto através de séculos que se tornou na sociedade que é hoje com organizações sociais divididas, basicamente, em 3 poderes: judiciário, executivo e legislativo. Claro, não é perfeito e ainda temos muito o que evoluir, muitas falhar e buracos a tampar, mas, sem uma organização social, voltaríamos para o início do neolítico.

No mais, gostei das críticas como falar na formação de um Estado-privado – e como este sistema tornaria uma espécie de ditadura de quem tem dinheiro pode falar também sobre como, sem uma organização forte reguladora e fiscalizadora poderíamos garantir a qualidade dos produtos; garantir a segurança de alimentos e equipamentos perigosos; é necessário a criação de órgãos reguladores: e como estes funcionariam de forma privada? Seria impossível porque se assim for, aqueles que tem dinheiro sempre vão garantir a “qualidade” do seu produto e até podem usar estes órgãos para dizer que os produtos dos concorrentes (mais pobres) não é seguro. A solução seria montar uma organização mais democrática, com participação de todos os envolvidos, fiscalização e etc. para tais funções é necessário funcionários; para pagar os funcionários e não dar vantagem pra ninguém, teria que ser cobrado uma taxa padronizada, e, olha só, cria se outro tipo de imposto e cria um serviço de regularização/fiscalização público.”


Adendo 2: outro leitor, dessa vez o Frederico Lambertucci, comentou:

“Você podia falar da questão da mais-valia Mehwert, camarada.O imposto é uma parte da mais-valia circulando em posse do Estado ou parte do Kapital vivo. No caso dos salários: o que constitui o lucro do capitalista? Em termos universais? É a conversão da Mais-valia em lucro. A parte destinada aos impostos é parte da mais-valia. Bem como aquela que vira juros, a parte dos salários que é paga em imposto. É a parte do trabalho vivo, ou Kapital vivo.

Logo, tudo o que circula em posse do Estado é o trabalho excedente e parte do trabalho necessário, ambos produzidos pelo trabalho que produz mais-valia, aquele chamado produtivo. Nesse sentido, a reclamação dos liberais é que os capitalistas não se apropriam de toda a mais-valia, mesmo que se apropriem de grande parte. Os Grandes capitalistas nunca irão reclamar de impostos. Isso porque a maior parte da carga tributária é reconvertida para eles via empréstimos, dívida pública e etc.

Só meia dúzia de liberalecos que acreditam em meia dúzia de capitalistas, que são na realidade os setores da pequena burguesia, que realmente sofrem com essa apropriação da mais-valia produzida por eles por outros setores que acha ruim a carga tributária.”

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